segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Eco e Narcíso: Bookchin e Bey: parte II, abertura para discussões


Meu amigo Durden respondeu meu 1º post sobre a polemica Bey-Bookchin de maneira tesuda e, como sempre, tenho meus acordos e desacordos, sejam eles mutantes ou paralíticos. Não quero ficar preso a história, procuro intencionalmente em meus textos tocar a história sem me deixar envolver por ela. A história não determina o homem. Mas vamos ao que deve ser dito e deixemos de delongas, de fato, o que eu gostaria de falar é sobre um mito, o mito de Eco e Narciso. Eu darei a base do mito, baseado no livro Mitologia Grega do Junito Brandão, para que eu posso prosseguir com minha argumentação. Não uma argumentação explicitamente sobre o tema, mas procurarei seguir um fio, mesmo que se perca a linha da discussão original.

Narciso era filho do rio Cefiso, em grego Κηφισος (Képhisos), “o que banha, o que inunda” e da Nina Liríope, que talvez signifique voz macia como um lírio. O fato é que Narciso era belíssimo, mais belo que os deuses, que os imortais e tal beleza na Grécia assustava, pois se tratava da já citada desmèsure, a hýbris. Sua mãe preocupada com quantos anos viveria seu filho, devido a este fato, acabou por procurar Tirésias, que possuía o dom da mantéia, da adivinhação. A resposta para a pergunta “Meu filho viverá muitos anos?” foi: “si non se uiderit” (se ele não se vir).

As grandes paixões do jovem começam, jovens da Grécia inteira e ninfas estavam presas a beleza de Narciso, que a tudo ficava indiferente; dentre as jovens estava a jovem ninfa Eco. Eco, que era uma ninfa muito tagarela, subiu ao Olimpo, lá em cima Zeus que queria dar suas escapadelas na terra – para viver seus romances – não sabia como passar a perna em sua esposa Hera. Desesperado, Zeus lembrou de Eco, a esposa seria distraída pela ninfa enquanto ele dava seus passeios. Tudo corria bem, mas a ciumenta Hera, “a defensora dos amores legítimos”, por fim, desconfiou, e sabedora do porquê da loquacidade de Eco, condenou-a a não mais falar: repetiria tão-somente os últimos sons das palavras que ouvisse.
Mas Eco estava apaixonada demais e seguira Narciso que havia saído com os amigos para uma caçada, num dado momento Narciso se perde dos amigos e grita a procura deles. Transcrevamos uma parte do dialogo:

“Dos sócios seus na caça extraviado
Narciso branda: Olá! Ninguém me escuta?
Escuta, lhe responde a amante Ninfa.
Ele pasma: em redor estira os olhos;
E, não vendo ninguém: Vem cá, lhe grita;
Convite igual ao seu parte dela.
Volta-se, nada vê: Por que me foges?
Clama; Por que me foges? Lhe respondem.
Da mútua voz deluso, insiste ainda:
Juntemo-nos aqui, vozeia em ânsias
De o pôr por obra; da espessura rompe,
Vem de braços abertos, anelando,
Tão suspirado objeto, alfim colhê-lo,
Ele foge; fugindo, ilude o abraço,
E Antes, diz, morrerei, que amor nos una.
Ela, imóvel, co´a vista o vai seguindo,
E, ao que ouviu, só responde: Amor nos una”.

Eco friamente repelida foge e se fecha em solidão, deixa de se alimentar e finalmente definha. Transforma-se num rochedo, capaz apenas de repetir os derradeiros sons do que se diz. As demais ninfas, irritadas com a insensibilidade do filho de Liríope, pediram vingança ao Nêmesis – o qual citamos no outro texto – que, prontamente, condenou Narciso a amar um amor impossível.

No verão Narciso se aproxima das límpidas e intocadas águas da fonte de Téspias para mitigar a sede. Debruçou-se sobre o espelho imaculado das águas e viu-se. Viu a própria imago, a própria umbra (sombra) refletida no espelho da fonte de Téspias. Viu-se e não pôde mais sair dali: apaixonara-se pela própria imagem. Lembremos uma parte da passagem:

“Deitou-se e tentando matar a sede,
Outra mais forte achou. Enquanto bebia,
Viu-se na água e ficou embevecido com a própria imagem.
Julga corpo, o que é sombra, e a sombra adora.
Extasiado diante de si mesmo, sem mover-se do lugar,
O rosto fixo, Narciso parece uma estátua de mármore de Paros.
Deitado, contempla dois astros: seus olhos e seus cabelos,
Dignos de Baco, dignos também de Apolo;”

Quer dizer, Narciso acaba por prender-se em si mesmo ao olhar-se no espelho, é incapaz de voltar a sociedade, de viver de fato e acaba por se tornar a linda flor narciso. Segundo interpretação de Murray Stein o mitologema de Narciso é baseado num tabu contra a vaidade (o excessivo auto-amor) e no horror do solipsismo (o eu como única realidade). Nossa discussão parece passar por ai, em ambos os perigos, o perigo de ser tomado por uma avalanche externa, quer dizer, “o que importa mais são os meios de produção, é o compromisso social, é mudar a pobreza, é mudar a desigualdade entre os homens” e o outro lado, o perigo de “ficar preso em si mesmo, no seu próprio desejo, sua vontade pessoal, no próprio egoísmo e ser incapaz de perceber que está contemplando apenas a sua imagem no espelho”. É certamente fácil reconhecer quais lados podem representar cada parte do mito. Evidentemente no mito tratamos de exageros. O próprio olhar no espelho é olhar seu reflexo, palavra que vem reflectere de re- “novamente” e flectere- “curvar-se”, donde chegamos a “voltar para trás”. No entanto o ato de Narciso é não só um voltar para trás, mas um voltar para dentro (a libido cessa de voltar-se ao objeto, voltando-se ao sujeito).

Já que falamos de exageros, que sejamos exagerados. Lembramos da religiosidade de Bey, na verdade algo como uma espiritualidade anti-autoritária, um desejo de dar todo poder ao sujeito. O poder do sujeito é fundamental se queremos uma sociedade libertária, na medida em que apenas este poder pode se contrabalancear a influencia do meio externo, dessa forma não massificando a pessoa, não homogeneizando e assujeitando os cidadãos. É exatamente ai que está a necessidade da descentralização, da multiplicidade de modos de organização e de crenças que o federalismo deve promover. Essas experiências limites, como coloca Bookchin, tem como fundamento não apenas uma mudança no foco propagandístico do anarquismo, mas também é uma forma de libertação dos condicionamentos do sujeito, na medida em que estes não se desfazem por mera sugestão. É aí também onde surge a necessidade de uma cosmovisão compromissada com a realidade interna, introvertida, intuitiva e mesmo irracional. Não podemos mais considerar o que não é racional, o que é da ordem do “religioso”, da ordem do “místico” ou mesmo da ordem do psicológico ou subjetivo como crendice sem importância, nem mesmo como epifenômeno do mundo externo. Lembremos do Selbst (si-mesmo) que Jung busca nos Upanixades é o encontro não apenas do que há de mais único em nós mesmos, mas é uma ligação visceral com todo nosso entorno, com todas as pessoas que fazem parte dessa sociedade e o nosso mito individual só pode se dar no coletivo.

Tanto o Estado como a Sociedade são conceitos abstratos usados muitas vezes para manipulação e construção de poderes separados, o em cima e o embaixo, toda a hierarquia ou massificação possíveis. Por exemplo, o Estado é construído e auto-legitima-se, quer dizer, os seres humanos (únicos dotados de vida) que controlam este poder criam instancias e mecanismos de controle de toda uma rede social, acabando por naturalizar o seu poder, do outro lado, a “Sociedade”, enquanto conceito, foi utilizada para unir massas de pessoas indiferenciadas. Em qualquer local que procure a massificação de seus membros a irracionalidade deve ser abolida, massacrada, mascarada e com ela toda a experiência do desatino[1] que deve ser cerceada e presa de alguma forma. Com ela devemos temer que se leve junto toda a religiosidade e espiritualidade sob o manto de ilusão, contra-natureza e pensamento anti-funcional.

Evidente que tratamos aqui de um assunto e fomos muito alem de Bookchin e Bey, certamente Bookchin não é um “mero positivista” ou “massificador”, tal como Bey não chega a ser um “Narciso”, mas nos valemos das oposições para tratar do assunto. Se o sujeito não admite ser ele mesmo uma condição de autoridade, algo inserido, mas além das relações sociais, além da abstrata sociedade, ele estará fadado a se perder na teia das relações sociais, ser dissolvido nessas relações. Ao mesmo tempo o egoísta é um alienígena caído de paraquedas no mundo, uma miragem autista presa em seu auto-engano. Se for ao ponto de não poder ajudar ninguém, ou melhor, se relacionar com ninguém senão consigo mesmo essa sua liberdade não será senão sua própria prisão, dessa forma será um grande covarde que não permite ser mordido pela vida, ser modificado e modificar nesta relação.

Se procuro o mito de Eco, que a tudo repete, e Narciso, que se prende em si, para falar sobre as figuras e os combates entre o social e o individual é porque me parece ser necessário um ponto do meio, no entanto, vejam bem, não estou aqui a defender um único caminho, mas uma meta que dê conta da diversidade do anarquismo social e do anarquismo ontológico ou religioso. Não acredito que devemos estar neste ponto do meio como forma de perfeição ou glória, mas muitas vezes é preciso se encontrar nos extremos para aprender com a vida, muitas vezes é necessária aquela típica unilateralidade e os esbravejamentos dogmáticos: “Deus não existe! O anarquista só pode ser ateu!” ou “O fundamento do mundo libertário é a bondade de Deus e apenas isso, nada mais é válido”. Claro que não podemos considerar este movimento, tipicamente cerceador, como a teleologia libertária. Minha meta como anarquista é ampliar os limites de aceitação da alteridade e procurar romper toda sociedade baseada no poder-sobre, na hierarquia, no Estado, na dominação das pessoas e da natureza, é romper através do fogo e da integração o próprio fascista que ronda dentro de mim.







[1] - Para o conceito de desatino ver Foucault em História da Loucura.

7 comentários:

Mr. Durden Poulain disse...

Fernando... sempre genial em suas integrações...

Abraços...

Fábio disse...

Eu ainda estou procurando entender por que razão a polêmica entre Bookchin e Bey ter ganhando, entre vocês, a aparência do conflito entre indivíduo X coletividade.

Ora, para vocês qual é a diferença, partindo-se do indivíduo, entre 1)ser reduzido e encerrado dentro da lógica formal e/ou dialética ou 2) ser dissolvido na imanência dos cosmos para se integrar ao devir?

Fábio disse...

Ora, todas estas grandes sistemáticas, estas grandes cosmologias (formalismo, dialética, holismo, historicismo etc.), de que se valeram os mais diversos anarquistas para tentar explicar a estrutura do real - e das quais tenta-se, de todas as maneiras, encerrar toda a existência -, são parte reais, parte discurssos.

A existência real e concreta, entregue irrestritamente a qualquer uma dessas lógicas, é escravidão.

Fernando Beserra disse...

Bem, Fábio, eu trato da relação entre "indivíduo" e coletivo entre Bey e Bookchin porque me parece uma diferença essencial entre eles, embora, claro, existe uma diferença epistemologica e/ou gnosiológica. Existir uma diferença entre os modos de apreensão do real, entre a base filosofica que os norteia não impede que existam outras questão tambem fundamentais que devem ser analisadas, sintetizadas, discutidas, vitalizadas ou assassinadas....

Sobre a continuação acredito que exista primeiramente uma diferença entre lógica formal e dialética, embora ambos sejam abstrações. Existem diferenças entre os dois movimentos ou "grandes sistemas" que você coloca, embora, você tenha toda razão ao dizer que ao limitar o ser humano a um modelo desses é uma forma de escravidão, na verdade, para mim, é uma forma de cerceamento da singularidade humana, concreta em cada um...

Sobre isso é importante colocar em termos de gnosiologia que o ser humano é uma realidade, em última instância, irrepresentável, incomensurável, pois guarda sempre algo de mistério...

Fábio disse...

Fernando, é aí que você talvez se engane.

A lógica dialética, veja bem, é tão formal quanto a "formal", propriamente dita. A briga entre formalistas e dialéticos é um conflito teórico entre dois filhos rebeldes de um mesmo pai, pois as rupturas observadas dentro do processo dialético ainda obedecem uma linguagem formal que as subjaz e as orienta independente de suas singularidades (e aqui é que se evidencia o formalismo da lógica dialética), ou seja, as sínteses não são, como num primeiro momento pode parecer, "icomensuráveis".

Tanto isso é verdade que, apesar das sinteses advindas do processo não poderem ser reduzidas a lógica das forças que as antecederam e das quais tiveram origem, elas ainda continuam obedecendo um processo triádico lógico, elas ainda continuam a reproduzir um esquema estrutural tese>antitese>síntese.

Ora, se essas sínteses fossem realmente "incomensuráveis", elas não poderiam continuar obedecendo tal raciocínio.

As rupturas dialéticas não passam da soma não resolvida das contradições internas de um lingagem ordenativa em movimento, de uma dinâmica formal.

Ora, não é o fato do sistema estar em movimento que torna os indivíduos inseridos nele livres, e sim o fato do indivíduo não se reduzir a um sistema qualquer, mas estar em relação com o sistema.

Ora, se somos mero peças funcionais dentro da engrenagem de um sistema estático ou dinâmico, isso não nos torna livres de maneira alguma.

Fábio disse...

Resumindo:

As sínteses não podem ser reduzidas, compreendidas, a partir das forças que as antecederam, mais podem sim serem reduzidas a dinâmica que orienta todas as etapas deste processo.

Fernando Beserra disse...

De acordo, a dialética é um movimento formal, é uma forma de lógica abstrata. De acordo, o ser humano não pode ser reduzido nem mesmo a ela, embora, certamente ela possa servir de fundamento heurístico que facilita compreensões sobre o ser humano, deixando claro que este com sua relativa liberdade. O ser humano sempre escapa, em parte, de qualquer lógica ou determinação, seja ela da ordem do condicionamento, das pulsões ou da própria dialética.

Todavia, é um erro tentar proceder como se não existisse diferença entre a lógica formal e a dialética, existem diferenças obvias, como você mesmo falou: é como se fossem filhos do mesmo pai. Filhos do mesmo pai podem guardar semelhanças entre si, mesmo genéticas, todavia, sejamos honestos, eles não são iguais. Da mesma forma cada movimento desses guarda sua diferença e sua repetição, assim como capitalismo e comunismo , coletivismo ou individualismo jamais se confundirão.