quarta-feira, 7 de novembro de 2007

O Resgate da Capacidade Política dos Cidadãos sob a luz do anarquismo

Este artigo é um pequeno esboço a ser complementado posteriormente.

Dentro das correntes do socialismo, o anarquismo destaca-se por não reduzir a idéia da igualdade aos fatores econômicos. O anarquismo entende como igualdade, muito mais do que a mera igualdade econômica, a igualdade dos cidadãos sob o anarquismo é a igualdade, econômica, política e social.

Se não há sentido para os anarquistas uma sociedade socialista com diferenças econômicas entre seus membros, se há diferenças de capacidade política entre seus cidadãos com alguns capazes de exercê-la e outros completamente privados desta, isto torna-se ainda mais absurdo. Dentro destes termos, a esfera do político, do econômico e do social estão completamente interlaçados, segundo o anarquismo, um mudança em uma das esferas somente não seria possível, pelo fato destas serem inevitávelmente indissociáveis como seria inóqua. Não há socialismo para os anarquistas sem o retorno pleno, da capacidade política, econômica e social. O primeiro a utilizar este termo dentro do anarquismo, foi o francês Pierre-Joseph Proudhon que inclusive lançou uma obra com este título: “A capacidade política da classe operária”. Proudhon como veremos adiante, tece considerações muito interessantes acerca deste conceito.


A capacidade política e econômica são indissociáveis, isto por que é possível existir uma sociedade com plena igualdade econômica mas com desigualdades brutais no modo de decisão e vice-versa, como é o caso da antiga sociedades grega, específicamente no caso da pólis Ateniense, onde as decisões políticas eram tomadas coletivamente, mas existiam desigualdades materiais, que se não são tão semelhantes históricamente às desigualdades econômicas oriundas do sistema capitalista, existiam em maior ou menor grau.

Em caráter mais amplo, o anarquismo e os anarquistas nunca objetivaram tomar o poder político em forma de instituições por que acreditam que a tomada do poder em termos de Estado não produz o efeito desejado desse resgate pleno desta capacidade, mas provocam exatamente, pelo menos a nível político o efeito contrário. Os anarquistas sempre se preocuparam em criar estruturas ou fomentar as já existentes para diluir, distribuir o poder entre a classe trabalhadora. O poder que faz sentido aos anarquistas, é o poder da coletividade, distribuído horizontalmente e igualmente entre instâncias populares, federações, comunas, sindicatos e confederações.

Dentro deste espectro, uma das maiores preocupações dos anarquistas foi sempre em permitir que numa futura sociedade socialista e libertária, deveríamos criar e reforçar mecanismos estruturais para o retorno pleno desta capacidade. Isto necessáriamente passa pela discussão do papel do Estado nesta limitação ou anulação da capacidade política individual e coletiva. Dentro deste escopo, não há sentido aos anarquistas falar de capacidade política, quando se há um poder concentrado em mãos de uma minoria detentora dos meios de produção e das decisões políticas (Estado Burguês ou Estado Operário).

O anti-estatismo dos anarquistas não significa como alguns pensam uma recusa à política. O que os anarquistas rejeitam e recusam é o tipo de política que se baseia e se sustenta no grau de passividade, de conformismo ou de alienação ou limitação da capacidade política dos cidadãos e este tipo de política baseado na passividade das massas está essencialmente conectado em termos temporais modernos com a formação histórica do Estado como conhecemos.

Para o anarquismo, o Estado é a obra da própria sociedade que se aliena. Sua insistência é na devolução, à sociedade, do poder que esta atribuiu ao Estado. Tratar-se-ia, portanto, de uma desalienação da sociedade, de uma reapropriação de seu poder alienado.” [1]

Os anarquistas almejam a ampliação da política em TODAS as esferas que não as do Estado, a tal comentada desalienação da capacidade política da sociedade, já que todos os Estados da forma com que o conhecemos em seu modelo moderno, ou seja, o Estado Burguês Nacional baseiam-se na passividade política dos cidadãos e na delegação permanente da decisão política às mãos de especialistas.

Essa política feita dentro dos limites do estado, é para Proudhon uma alienação da força coletiva: “O político é, em relação ao social, o que o capital é em relação ao trabalho, ou seja, uma alienação da força coletiva.” [2]

Ao conceder a primazia política ao Estado a sociedade aliena-se de sua plena capacidade de decisão política. Elimina-se a autogestão político em detrimento da heterogestão ou da alienação da gestão do espaço público por uma minoria. Estado e capacidade política são antagônicos pois o primeiro está fundamentado sob a diminuição, ou eliminação total da segunda (no caso do Estado Absolutista por exemplo).

A maior crítica que se concebe normalmente aos anarquistas é a de que estes ao rejeitarem o Estado e sua política legitimam o poder dos partidos burgueses que a partir disto consolidam suas propostas com a negação política dos anarquistas; os anarquistas agiriam supostamente e segundo alguns críticos de esquerda como fomentadores de um niilismo apolítico. A proposta dos anarquistas é exatamente o contrário da passividade que os acusam.

Primeiro, deve se ter em mente que Estado e política são em suma coisas distintas. Como diria o pensador Murray Bookchin "A política não é a arte de gerir o Estado e os cidadãos não são eleitores ou contribuintes. A arte de gerir o Estado consiste em operações que engajam o Estado: o exercício de seu monopólio de violência, o controle dos aparelhos de regulação da sociedade por meio da fabricação de leis e regras, a governança da sociedade por intermédio de magistrados profissionais, do exército, das forças de polícia e da burocracia”. [3]

O contrário também é verdadeiro, a arte de gerir o estado não é a política! A política vai muito além desta relação. A política está presente nas decisões comunais, nas decisões de bairro, nas relações de produção, nos locais de trabalho, de estudo, etc. O Estado, como bem dito anteriormente, é um produto da alienação política coletiva, nasce sob este aspecto, sob esta condição como vemos em sua origem, O Estado Nacional Moderno.

Tomando este raciocínio como guia, ao tomar o poder do Estado não modificamos, nem devolvemos a capacidade política de seus cidadãos, apenas legitimamos esta forma de alienação política coletiva, mesmo que se efetuem mudanças econômicas.

O Estado não é apenas um mero instrumento da classe dominante, ou seja, da Burguesia, a estrutura do Estado trabalha justamente sob a lógica da despolitização em massa como pré-requisito para seu bom funcionamento. Muito mais do que isto, o Estado é como observado no pensamento de Proudhon “obra da sociedade que se aliena”. [4]

No chamado Estado operário, ou seja, o Estado da "ditadura do proletariado" de Marx, mantém-se esta alienação política coletiva, pois esta é uma condição básica para quaisquer Estados existirem, a ideologia marxista amolda-se nítidamente a esta alienação política por meio da teoria da vanguarda(corpo de especialistas ou os chamados revolucionários profissionais mais preparados para guiarem a revolução). A vanguarda nada mais é, do que um grupo de profissionais da política preparados não para gerir a sociedade, mas gerir sim ao Estado, representam na verdade a continuação da tecnificação da política, da política não como exercício, mas como uma técnica reduzida à um pequeno grupo de especialistas.

Os anarquistas entendem a política, como uma doxa, ou seja do grego, opinião, algo não restrito a um mero grupo ou minoria, mas algo que faça parte do cotidiano de todas as pessoas. O ser humano é essencialmente um ser político. Gerir a política é cultivar a doxa grega, um exercício contínuo e cotidiano que deve envolver todos os membros da comunidade.

O projeto marxista de ampliação da capacidade política é o de fermentação à tomada do poder estatal, nada mais do que isto; o envolvimento político que o marxismo concebe é o envolvimento político das bases submetidas às lideranças, um corpo de “especialistas”.

Guiados pela visão de tomada de poder pelo centro, o marxismo depende deste poder mobilizatório e envolvimento político para tomar o Estado e as instituições que serão à base da futura sociedade “socialista”.

Utilizando o exemplo da revolução russa, vemos que neste processo revolucionário houve a princípio, uma dinâmica de auto-organização popular(os sovietes) que fugiu totalmente do controle das estruturas precognizadas teóricamente pelos bolcheviques. Esta dinâmica, encontrada em outros exemplos históricos e processos revolucionários, que se não aparentemente tão eficiente quanto parece em tomar decisões consegue efetivamente fazer renascer esta capacidade política coletiva aprisionada históricamente pelo Estado, que emerge nesse processo de desalienação coletiva como um verdadeiro tsunami que varre a velha sociedade; mas tão logo este poder de desalienação torna-se vigoroso a ponto de estruturar novas formas de organização que soterrem de vez as estruturas políticas e históricas que submeteram sua capacidade política à uma redução total, reagem os micro-estados dentro do movimento revolucionário, a vanguarda da contra-revolução e da reação, as estruturas do velho mundo: os revolucionários profissionais. No caso da Revolução Russa, estão encarnados pelos bolcheviques, que com sua organização política em partidos, ou seja reproduções fiéis da mesma estrutura do Estado(já que terão de ocupá-lo, tem de se organizar como o mesmo se organiza), atuam sob a mesma lógica, entendem que há de se ter governantes e governados, líderes e liderados e canalizam o Tsunami da revolta popular e a autonomia das massas em “barragens” organizacionais verticalizadas: ressuscitam o que já deveria estar morto: o Estado, que assume conforme conhecemos pelos relatos históricos sobre o Estado Bolchevique [5], formas mais antropofágicas e brutais de opressão.

Há uma outra confusão que costuma tomar como iguais Estado e Sociedade. Tal assertiva ignora os processos históricos, a Sociedade é algo que sem dúvidas antecede o Estado, já que este na forma como conhecemos é relativamente novo, falando em termos históricos. Estado e Sociedade são coisas completamente distintas. O Estado é um grupo de profissionais, dirigentes, mandatários, eleitos (de diferentes formas) para tomar decisões no lugar de outréns, a sociedade é a reunião de indivíduos organizados de uma determinada maneira.

Fundamentado sobre a alienação da capacidade política de milhares de cidadãos em troca de um suposto reconhecimento de que os burocratas ou os “revolucionários” profissionais são mais capazes do que outros milhões de trabalhadores para gerir a res publica (república), ou seja, a coisa pública e servirão aos desígnios políticos dos que tiveram seus direitos políticos limitados, o Estado para existir, torna necessário que uma grande maioria tenha seus direitos políticos privados.

Como bem indica Mikhail Bakunin: “Entre a ditadura revolucionária e a centralização estatista, toda a diferença está nas aparências. No fundo, ambas são apenas uma única e mesma forma de governo da maioria pela minoria, em nome da suposta estupidez da primeira e da pretensa inteligência da segunda”. [6]

E vai além: “Assim, nenhum Estado, por mais democráticas que sejam as suas formas, mesmo a república política mais vermelha, popular apenas no sentido desta mentira conhecida sob o nome de representação do povo, está em condições de dar a este o que ele precisa, isto é, a livre organização de seus próprios interesses, de baixo para cima, sem nenhuma ingerência, tutela ou coerção de cima, porque todo Estado, mesmo o mais republicano e mais democrático, mesmo pseudopopular como o Estado imaginado pelo Sr. Marx, não é outra coisa, em sua essência, senão o governo das massas de cima para baixo, com uma minoria intelectual, e por isto mesmo privilegiada, dizendo compreender melhor os verdadeiros interesses do povo, mais do que o próprio povo. [...]”. [7]

Após a tomada do poder do Estado, há uma luta inerente ao projeto marxista(ou qualquer grupo que assuma o Estado) em perpetuar este poder e nisto subentende-se que é necessário reduzir ainda mais a capacidade política dos governados e instituir estruturas e modelos que consigam viabilizar a manutenção da vanguarda operária no poder e o expurgo dos disensos e dos descontentes. Se na sociedade burguesa existem diferenças de classes representadas pela subtração dos meios de produção ao proletariado, na sociedade comunista que desejam os marxistas há a subtração da capacidade política do operário:

Assim, sob qualquer ângulo que se esteja situado para considerar esta questão, chega-se ao mesmo resultado execrável: o governo da imensa maioria das massas populares se faz por uma minoria privilegiada. Esta minoria, porém, dizem os marxistas, compor-se-á de operários. Sim, com certeza, de antigos operários, mas que, tão logo se tornem governantes ou representantes do povo, cessarão de ser operários e pôr-se-ão a observar o mundo proletário de cima do Estado; não mais representarão o povo, mas a si mesmos e suas pretensões de governá-lo. Quem duvida disso não conhece a natureza humana. [...]”. (Mikhail Bakunin) [8]

Marx, comenta esta citação de Bakunin com uma profunda fé na hierarquia política como um mecanismo que seria essencialmente neutro, dependendo assim o Estado Burguês, de uma apropriação da classe operária que daria a este uma gestão essencialmente revolucionária.

São de Marx as seguintes palavras: “Se o senhor Bakunin conhecesse, ao menos, a posição que ocupa o gerente de uma cooperativa operária, todas as suas fantasias sobre a dominação iriam ao diabo. Ele deveria se perguntar: quais as formas que podem adotar as funções administrativas, na base de um Estado Operário? (se ele quer denominá-lo assim)” [9]

O Estado para Marx e os marxistas seria um objeto neutro; cuja função dependeria de seu uso, um “bom” uso do Estado levaria-o a ser potencialmente revolucionário, um “mau” uso seria a utilização deste pela burguesia. Tal análise não leva em conta e muito menos tece críticas a função histórica do Estado que em sua própria gênese, alinhou-se com projetos de dominação de classes dominantes em ascensão.

O Estado não é neutro, mas ainda é uma vaca sagrada da esquerda, uma vaca sagrada que se consolida a partir da alienação política de seus cidadãos.

Todo Estado para manter-se no poder necessita ampliar esta alienação política para seu perfeito funcionamento, como bem explicita o velho Proudhon “não é por seus governantes que os povos se salvam, mas que se perdem”. [10]

A velha autofagia dos Estados Marxistas é apenas a consequência desta ampliação da alienação da capacidade política individual e coletiva de seus cidadãos por meios mais coercitivos, é também, o controle total do estado sob o cidadão por meio da violência institucionalizada ou pelo que chamamos de terrorismo de estado em sua forma de dominio mais avançada e totalitária, aplicação potencialmente mais ríspida das desigualdades políticas e das teorias elitistas contidas implícitamente em suas idéias. No caso da extrema-direita, a coerência é que se o fazem, fazem de maneira explícita e conscienciosa.

O exemplo ateniense como apontamento ao retorno da capacidade política dos cidadãos

Antes de tecer apontamentos, é necessários explicar que não se pretende descrever a sociedade grega como um exemplo de “sociedade libertária” ou muito menos camuflar o fato desta conter contradições que aos olhos de nossa herança humanista, as tornam um próprio paradigma histórico: existência de escravos, política externa imperialista, etc.

Contudo, o que se pretende a partir de suas especificidades de organização política é apontar alguns paralelos interessasntes, que não tem a mínima pretensão de tornar-se-ão similitudes integrais com o que desejam os anarquistas, mas sim rever algumas experiências de democracia direta históricamente viáveis. Além disto, a pólis grega já foi objeto de estudo de no mínimo dois conhecidos pensadores libertários: Murray Bookchin e Cornelius Castoriadis e isto já seria o suficiente para apontarmos algumas questões.

A partir destes esclarecimentos, podemos críticamente desenvolver o argumento anterior, tecendo considerações mais claras a respeito da arte da política, que jamais pode ser entendida como um processo restrito a uma minoria profissionalizada ou hiper-especializada. Como bem indica o pensador grego Cornelius Castoriadis:

"Há aquela frase maravilhosa de Aristóteles:” Quem é o cidadão? Cidadão é aquele que é capaz de governar e de ser governado.”Há milhões de cidadãos na França. Por que não seriam eles capazes de governar? Porque toda a vida política tem justamente como objetivo desensiná-los, convencê-los que existem peritos a quem se deve confiar o governo. Existe, portanto, uma contra-educação política. Ao invés das pessoas se habituarem a exercer todo tipo de responsabilidade e a tomar iniciativas, habituam-se a seguir cegamente ou a votar nas opções que lhes são apresentadas.” [11]

Assim como concordamos com Castoriadis, quando ele diz que "A política não é para ser feita por especialistas concordamos que não existe ciência da política". Parafraseando-o, afirmamos que não existe ciência da revolução (ou socialismo científico). A revolução não precisa de "especialistas" que se preparam mais do que a maioria para guiarem as massas ao caminho socialismo. A política como doxa é um processo coletivo e individual contínuo, onde a auto-formação de tod@s é fundamental para seu sucesso. A plena capacidade política individual e coletiva estão estritamente ligadas.

Para o pensador Murray Bookchin, o processo de alienação política coletiva, está intrísecamente ligado a perda de relações comunais, comunitárias que se estabelecem nas esferas municipalistas, levando justamente à ruptura neste processo de auto-formação, segundo Bookchin...o indivíduo autônomo, privado de todo contexto comunitário, de relações de solidariedade e de relações orgânicas, encontra-se desengajado do processo de formação de si – paideia – que os atenienses da antiguidade atribuíam à política como uma de suas mais importantes funções pedagógicas.” [12]

A paideia grega da qual Bookchin refere-se com todos seus limites e especificidades próprios da democracia ateniense, envolvia justamente esta recusa da política como “...um sistema de relações de poder gerido de modo mais ou menos profissional por pessoas que se especializaram nisso...”. [13]

O sistema da pólis ateniense grega jamais funcionaria baseado na alienação coletiva, o cidadão grego participava ativamente das decisões políticas(era comum assembléias que reuniám milhares de cidadãos), além disto mantinha uma ligação que se não podemos chamar de comunal no sentido revolucionário e moderno do termo, estava estritamente ligada ao local onde o grego vivia a maior parte de sua vida; é claro, que os locais de trabalho e de moradia para o cidadão ateniense ainda não estavam afetados pela dinâmica de segregação sócio-espacial que o capitalismo ensejou nas grandes urbes, mas ainda assim o processo de democracia ateniense é muito rico em suas especificidades políticas: “A assembléia, que detinha a palavra final na guerra e na paz, nos tratados, nas finanças, na legislação, nas obras públicas, em suma, na totalidade das atividades governamentais, era um comício ao ar livre, com tantos milhares de cidadãos com idade superior a 18 anos quantos quisessem comparecer naquele determinado dia. Ela se reunia frequentemente durante o ano todo, no mínimo quarenta vezes, e normalmente chegava a uma decisão sobre o assunto a discutir em um único dia de debate, em que, em princípio, todos os presentes tinham o direito de participar, tomando a palavra.” [14]

Os gregos tinham um nome para esse direito de participação, se chamava Isegoria, ou seja, o direito universal de falar na Assembléia.

Atrevo-me a uma anacronismo para abertamente contestar o fato das democracias contemporâneas tentarem resgatar sua herança na particular democracia ateniense, é pouco provável que um cidadão livre grego se identificasse com a democracia representativa das quais estamos acostumados a conviver. A democracia grega era uma democracia direta, não-representativa, nada tinha haver com a turba de políticos profissionais que os sistemas eleitorais estão acostumados a eleger. Ainda por que, o sistema de democracia ateniense, não sobreviveria com a alienação coletiva que o Estado e o sistema democrático de hoje necessitam para sobreviver.

Há uma tentativa em conectar as origens da democracia representativa atual com a democracia ateniense, mas podemos ver claramente, que no que concerne à base do sistema de democracia ateniense(ampla participação coletiva) o atual sistema político está baseado totalmente no oposto(passividade coletiva e um grupo de profissionais especializados em política); a democracia representativa como conhecemos está totalmente alijado do conceito grego de participação política do cidadão. Afinal não há como buscarmos uma raiz em comum entre a democracia ateniense e a democracia atual, se não formas distintas de sustentação de regimes políticos completamente distintos com desenvolvimentos históricos ligados a processos diferentes, sendo o último sustentado históricamente por um discurso de apropriação política do passado.

A Isegoria Grega não é admitida no sistema político atual, ao menos que você consiga se eleger, ou seja, tornar-se um especialista da política, não poderá participar das decisões dos grupos particulares, que envolvem toda a maioria. Isto seria justificável segundo alguns por básicamente dois argumentos principais:

  • A atual complexidade da vida moderna contemporânea, não conseguiria ser organizada por modelos de democracia direta algo que seria típicamente de uma sociedade “rudimentar”, da qual a democracia representativa seria uma evolução “consequente” e “natural”.

  • Outro argumento é a atual configuração urbana das cidades e o número de cidadãos envolvidos em tal processo, que não possibilitaria a organização por assembléias por só funcionar em contextos muito específicos.

Para responder básicamente à estes dois argumentos, os anarquistas prontamente dão sua sugestão! Federalismo! O de Proudhon! Mas vamos examiná-los em separado antes de maiores considerações.

As especificidades da democracia representativa se dariam apenas pelas necessidades do avanço tecnológico que não suportaria uma outra forma de exercício político distinto da que conhecemos, segundo este discurso ideologizante, a democracia representativa seria uma complexificação “natural” da democracia ateniense, mediante necessidades da sociedade moderna. Isto já é em princípio muito questionável, como dito anteriormente faz parte de um discurso que deseja fundar as raízes das democracias contemporâneas sob a democracia grega, mas é muito mais questionável quando observamos a questão da complexidade da sociedade moderna.

O primeiro ponto a observarmos, é que a complexidade da sociedade moderna foi em grande medida criada pelo próprio sistema de mercado. Muito desta complexidade é puramente desnecessária. Como bem afirmou Sam Dolgoff: “(...) existem pelo menos 30 tipos diferentes de veículos utilitários esporte, a maioria deles com centenas de componentes que são característicos de cada um, feitos por diferentes fábricas, cada um tendo a necessidade de sua própria e hábil produção e reparo. Isso adiciona bastante à complexidade da vida. Os Benefícios deste tipo de “complexidade” têm mais importância do que os danos que ele causa?”. [15]

Além disto não podemos enxergar a complexidade de uma sociedade como algo “natural”. Não existe algo natural em história, existe sim a atuação de agentes históricos sobre a realidade, que a modificam por meio das diferentes correlações de forças e de domínio(no caso dos que detém os meios de opressão existentes). Esta complexidade não surgiu espontâneamente, mas sim foi criada. O que nos intriga, na atual sociedade capitalista é como tal complexidade é falha em determinados aspectos, como bem exemplifica Dolgoff:

Em comparação, as complexidades das necessidades humanas – serviço de saúde, habitação, comida, educação, etc. - não são adequadamente tratadas por um sistema de mercado. Nesse sentido, o sistema de mercado de nossa época, subsidiado pelo Estado, é extremamente mal apropriado para a complexidade, não só da sociedade moderna, mas também dos seres humanos.” [16]

Em relação a configuração urbana das grandes cidades na forma com que a conhecemos, ou seja, pós Primeira Revolução Industrial, esta básicamente se deu por mecanismos próprios ao sistema capitalista, obedeceu regras inerentes a este sistema, moveu pessoas e populações inteiras às cidades grandes ou megalópoles por questões econômicas, desejos(ou oportunidades) retroalimentados por este sistema, e conduziu a segregação sócio-espacial pelas dinâmicas históricas particulares de seu desenvolvimento.

Em relação a influência destes fatores sócio-espaciais, não negamos que diante desta realidade, seja uma tarefa muito fácil auto-instituir formas de decisões coletivas sem ter de necessáriamente alterar de certa maneira estes espaços físicos. O ambiente geográfico conscientemente organizado ou não, influe nas emoções e maneiras, comportamentos e modos de ação, procedimentos e condutas, dos indivíduos. [17]

Estes espaços óbviamente diante de um evento revolucionário deverão ser reoordenados(e é nítido nos exemplos históricos que estes o são), o que provocará uma mudança substancial no espaço físico que conhecemos como cidade provávelmente isto não será uma tarefa demasiada fácil(na verdade será uma tarefa das mais colossais!), acreditamos no entanto, que o ser humano é suficientemente capaz e criativo de alterar tais adversidades e com o tempo, muito da configuração típica das cidades capitalistas poderá quem sabe ser modificada a ponto de conceber estruturas mais adequadas não só ao sistema federalista(que falaremos mais específicamente adiante), mas ao convívio pleno e humano de uma sociedade integrada à sistemas ecológicamente viáveis e que dê satisfatóriamente à coletividade o pleno anseio de seus desejos políticos.

Há habitualmente os que acreditam que tal trabalho é algo irrealizável, são estes os mesmos que precisam de uma imensa soma de “dados técnicos” para que mostremos que tal trabalho é puramente viável de ser realizado; eu perderia mais algumas páginas os convecendo e inevitávelmente afastaria uma grande parcela sob este discurso tecnificado que nada mais faz a não ser criar uma linguagem inteligível perdida entre meandros retóricos disfarçados por números.

No caso das modificações das urbes vemos que a principal limitação para as modificações não são de caráter técnico, mas sim político. Há suficiente conhecimento e aparato técnico para mover tais modificações, estas não ocorrem, não por falta deste, mas sim por inércia ou por motivos diametralmente opostos ao que deseja a coletividade.

Isto é claro não significa que históricamente uma grande metrópole urbana inviabilize o sistema federalista anarquista, isto é fácilmente contra-argumentável no que diz respeito à uma experiência histórica muito relevante ao anarquismo no mundo moderno: a Revolução Espanhola. Não desejando me alongar sobre o tema(que já é objeto de estudo suficientemente amplo neste sentido para escrever um livro ou um volume destes), é fortuito no entanto informar, que sob uma população de 24 milhões de habitantes à época da revolução Espanhola, a principal central sindical da época, a CNT(Confederação Nacional do Trabalho), imbuída do horizonte anarquista e que contava com 1,5 milhão de aderentes, promoveu a coletivização geral dos meios de produção. As ferrovias, os transportes urbanos, bondes, ônibus, a eletricidade, as agências marítimas, a indústria metalúrgica foram coletivizadas, antes mesmo do apelo oficial da CNT à greve geral de 18 de julho de 1936(os trabalhadores já autogestionavam e coletivizavam os serviços públicos desde 21 de julho). O movimento das coletivizações que também atingiram enormemente o campo, teria envolvido entre um milhão e meio e dois milhões de trabalhadores. [18]

Com todas as características que segundo os ideoólogos da democracia representativa inviabilizariam a organização de uma grande cidade(na verdade diversas grandes cidades), os trabalhadores na espanha, conseguiram realizar uma coordenação magistral de autogestão política e social segundo bandeiras muito claras ao anarquismo durante no mínimo 30 ou 40 anos anteriores de militância libertária e que já tinham sido explicitadas por Mikhail Bakunin na I Internacional. A derrota dos trabalhadores espanhóis, não se deu por motivos técnicos, mas sim de correlações de força. Afinal a coalizão golpista do General Franco, estava nada mais nada menos, abastecida e financiada pelo governo alemão de Adolf Hitler e do italiano de Benito Mussolini, que utilizaram o conflito na espanha em 1936 como “ensaio geral” da segunda guerra mundial, testando seus avanços tecnológicos belicistas contra a população espanhola, como bem prova o quadro Guernica de Pablo Picasso. Golpeada pelos fascistas de direita(franquistas) e os de esquerda(stalinistas), a anarquia(ausência de poder) na Espanha durou tempo o suficiente para demonstrar toda a viabilidade da proposta anarquista: que é possível viver sem Estado e com a auto-organização política, social e econômica dos trabalhadores.

[1] MOTTA, Fernando C. Prestes: Burocracia e Autogestão, op. Cit., p 113

[2] MOTTA, Fernando C. Prestes: Burocracia e Autogestão, op. Cit., p 100)

[3] BOOKCHIN, Murray: Municipalismo Libertário, op. Cit, p 000

[4] MOTTA, Fernando C. Prestes: Burocracia e Autogestão, op. Cit., p 113

[5] Texto do João(Kato Nigra) Sobre a Revolução Russa(http://katonigra.blogspot.com)

[6] BAKUNIN, Mikhail: Estatismo e Anarquia, op. Cit., p 000

[7] BAKUNIN, Mikhail: Estatismo e Anarquia, op. Cit., p 000

[8] BAKUNIN, Mikhail: Estatismo e Anarquia, op. Cit., p 000

[9] MARX, Karl: Notes sur le livre de Balounine Étatisme et Anarchie, en Acerca del anarcosindicalismo y el anarquismo, Moscou, s.d., 1973

[10] PROUDHON, Pierre-Joseph: Les Confessions d'un Révolutionnaire, op. Cit., p. 86

[11] CASTORIADIS, Cornelius: http://www.cfh.ufsc.br/~aped/basta_de_mediocridade.htm

[12] BOOKCHIN, Murray: Municipalismo Libertário, op. Cit, p 000

[13] BOOKCHIN, Murray: Municipalismo Libertário, op. Cit, p 000

[14] FINLEY, M. I: Democracia Antiga e Moderna, op. Cit., p. 31

[15] DOLGOFF, Sam: A Relevância do Anarquismo para a Sociedade Moderna, op. Cit., p 10

[16] DOLGOFF, Sam: A Relevância do Anarquismo para a Sociedade Moderna, op. Cit., p 11

[17] DEBORD, Guy: 'Introduction à une critique de la géographie urbaine', Les Lèvres Nues, 6 (September 1955) trans. in Situationist International Anthology, ed. Ken Knabb (Berkley, 1981), pp. 5-8.

[18] MINTZ, Frank e GOLDBRONN, Frédéric: Quando a Espanha Revolucionária Vivia Em Anarquia, REVISTA LIBERTÁRIOS, pp15.


(Continuaremos ampliando o artigo com a capacidade política do indíviduo dentro de uma estrutura federativa e comunista libertária)