Bom, como não desejo me esquivar da discussão, e já não podendo ignorá-la (dada a sua proporção), venho a público no intento de dar minha contribuição à polêmica. Não conheço nenhum dos dois autores profundamente (muito menos o H. Bey, que até hoje estou devendo de ler), e o pouco que li do Bookchin (na sua discussão sobre municipalismo libertário) não me dá muita noção do mesmo. No entanto, considerando que a discussão já foi além dessa dualidade, creio ter que me declarar sobre alguns aspectos. O primeiro ponto que tenho a dizer é que, embora possa parecer o contrário, não tenho ojeriza à Bey e ao anarquismo ontológico: posso até me abrir francamente e dizer que toda minha opinião sobre isso é baseada em preconceitos... preconceitos, porém, que eu acho que têm a sua razão de ser, mas que não se justificam por isso. Pois até onde eu vasculhei - "passei os olhos" - os textos do Bey, ele é até muito interessante, na sua tentativa de redefinir a "revolução" à contrapelo da esquerda tradicional, masoquista ('marxoquista', diria o Fernando) e obreirista até os ossos. O que me afasta de uma abertura maior é justamente a leitura que eu vejo as pessoas fazerem do H. Bey - uma leitura descompromissada, "aventureira", modista. Pois a Baderna, no fundo, como subseção (ou seja lá o que for) da Ed. Conrad, é uma editora capitalista como qualquer outra, interessada em vender as suas mercadorias. E ela assim o faz, empacotando seus livros numa embalagem "subversiva", tudo voltado para um público de infanto-juvenis consumidores da revolução. Não acho que seja o caso de ninguém por aqui, pelo contrário, nem que seja o caso de boicotarmos a Baderna. O problema é não ter esse distanciamento crítico; ou pior, tomar as teorias do Bey e, sem mediação alguma, tentar aplicá-las diretamente na realidade como uma espécie de lazer de fim de semana. Com isso se condena algo que poderia ser uma proposta interessante (o terrorismo poético, as ZAT's, etc) a ser um fim em si mesmo, um mero momento de "descontração". Não que eu seja a favor do militantismo 'duro' e 'compromissado', pelo contrário: é a racionalidade capitalista de organização do trabalho - este algoz de todos nós - que insiste em separar o "sério" do "frívolo", o "laborar" do "brincar". Dito isto, desmanchado os preconceitos (também aqueles que se sustentam contra mim), devo passar adiante.
Na verdade, tenho que admitir que não li o debate todo - quando cheguei de viagem, ele já estava aí, e não tive a paciência de ler linha por linha. Me conformei com um "apanhado geral", e, claro, não sem algum pre-conceito do que cada um iria sustentar (por conhecer os debatedores, o que não passou pelo meu crivo eu complementei com a imaginação). Não tomem isso como ofensa ou reducionismo de vossas personalidades, e sim como auto-crítica, pois eu sei os preconceitos são na maioria dos casos insustentáveis. O último texto do Fernando, pelo menos, eu li de cabo à rabo, e com alguma atenção. São vários os aspectos que me chamaram a atenção, e que eu poderia tentar listá-los.
Comecemos pela velha polêmica, ao ponto que eu identifiquei como sendo a questão mudança individual X mudança coletiva.
[Nossa discussão parece passar por ai, em ambos os perigos, o perigo de ser tomado por uma avalanche externa, quer dizer, “o que importa mais são os meios de produção, é o compromisso social, é mudar a pobreza, é mudar a desigualdade entre os homens” e o outro lado, o perigo de “ficar preso em si mesmo, no seu próprio desejo, sua vontade pessoal, no próprio egoísmo e ser incapaz de perceber que está contemplando apenas a sua imagem no espelho”. É certamente fácil reconhecer quais lados podem representar cada parte do mito.]
Acho que esse questionamento já foi feito outra vez, mas gostaria de repetí-lo: seria possível separar ambos os lados (transformação coletiva - transformação individual)? Ou será que existe aí um processo "dialético" de bi-implicação, a transformação individual ensejando a transformação coletiva e vice-versa? Claro, existe a necessidade de converter a estrutura social para um outro "módulo" ou "plano", e por isso quero dizer fazer uma "revolução". Mas não seria também a forma do sujeito, a forma da subjetividade um componente dessa estrutura, ou dos fundamentos dessa estrutura? Quer dizer, à forma de organização social determinada, num plano histórico-cultural, não corresponderia uma subjetividade determinada, ou seja, uma espécie de "ethos" histórico-cultural? Pois a forma do sujeito burguês, ou a constituição capitalista do sujeito (não confundir com 'classe') pressupõe certos valores morais, hábitos, formas de pensar e agir no mundo etc. O sujeito burguês é aquele que funda sua mediação no mundo através da mercadoria, e ao mesmo tempo, através do Direito e do Estado, no que concerne à comunidade. À esse plano de práxis, corresponderia uma certa racionalidade específica (formalizante) etc etc. Isso não é determinismo: não ao ponto de se declarar que não há fuga disso. Na verdade, a necessidade é que haja uma ruptura desse esquema. A individualidade humana alcança expressão até quando reprimida e assujeitada. Mas enfim, essa é outra discussão... O que eu queria colocar é que, se partimos puramente do âmbito social e 'externo' - "o que importa é mudar a sociedade, de modo a erradicar a pobreza e abolir as classes" - não contemplamos a questão no seu todo, e ainda corremos o risco de descambar para uma politica do terror, massificadora e autoritária, stalinista mesmo, insensível ao extremo para com a individualidade. Como se as 'pequenas questões' do cotidiano não fizessem parte da tarefa revolucionária: o amor, as relações pessoais, o prazer e a dor, os sentimentos etc, e tudo que faz parte da individualidade. E aí - em última instância - entramos numa paranóia de acusar a todos de pequeno-burgueses por não quererem sacrificar o pouco que resta de suas vidas para o altar da "Revolução" (com R maiúsculo), como se a revolução fosse algo separado de nós.
No outro extremo, o da "transformação individual", também corre o risco de se fechar sobre si e de se conformar com a existência da ordem (ignorando a máxima de Bakunin, sobre a condição da liberdade individual_esta só se realiza quando contemplada pela liberdade coletiva, universal). Mas ambos os enfoques, quando tornados unilaterais, ignoram, talvez, o questionamento anterior: a forma da subjetividade (a forma de gerir o subjetivo e de se relacionar com o subjetivo) e a forma da sociedade (a estrutura da organização das relações sociais) existem como coisas separadas, distintas, ou formam uma estrutura só (já sem a ladainha da "infra-estrutura" e "super-estrutura")??
[O poder do sujeito é fundamental se queremos uma sociedade libertária, na medida em que apenas este poder pode se contrabalancear a influencia do meio externo, dessa forma não massificando a pessoa, não homogeneizando e assujeitando os cidadãos. É exatamente ai que está a necessidade da descentralização, da multiplicidade de modos de organização e de crenças que o federalismo deve promover. Essas experiências limites, como coloca Bookchin, tem como fundamento não apenas uma mudança no foco propagandístico do anarquismo, mas também é uma forma de libertação dos condicionamentos do sujeito, na medida em que estes não se desfazem por mera sugestão.]
Interpreto da seguinte forma: o "poder do sujeito" quer dizer que a sociedade deveria voltar-se ao sujeito enquanto elemento primordial, e nisso estou de acordo, inclusive com as várias possibilidades que permite um modo federalista de organização social. Também concordo sobre o potencial da autogestão: permitir não só uma modalidade diferente de propaganda ("pela ação"), mas sobretudo um exercício de des-condicionamento, de autonomia, um fazer-se livre por meio da auto-atividade. No entanto, creio que Bookchin coloca a coisa um pouco diferente: projeta tal intenção no municipalismo, na eleição de uma "chapa" que socialize progressivamente o poder público etc. E acho que isso não sai isento de alguma crítica, na medida em que a instância do poder municipal é também uma instância do "poder público", ou seja, um degrau a menos na estrutura do Estado, fundado justamente na separação público-privado, ou seja, na existência da comunidade como algo diferenciado da vida civil e na definição da área de influência dos respectivos poderes - o "privado" (empresas, capital etc) e o "público".
[Não podemos mais considerar o que não é racional, o que é da ordem do “religioso”, da ordem do “místico” ou mesmo da ordem do psicológico ou subjetivo como crendice sem importância, nem mesmo como epifenômeno do mundo externo.]
[Em qualquer local que procure a massificação de seus membros a irracionalidade deve ser abolida, massacrada, mascarada e com ela toda a experiência do desatino que deve ser cerceada e presa de alguma forma. Com ela devemos temer que se leve junto toda a religiosidade e espiritualidade sob o manto de ilusão, contra-natureza e pensamento anti-funcional.]
Bom, como se sabe eu não tenho uma opinião formada sobre isso. Tenho a impressão que a emergência de uma nova sociedade - com muitos "mundos" - traria consigo novas formas de espiritualidade, religiosidade, novos desejos e formas de expressá-los etc. É verdade que o capitalismo varreu toda espiritualidade para um âmbito abstrato precisamente por considerá-la anti-funcional. Disso decorreria, talvez, a transformação da religião em mera 'crença', carregando também - progressivamente - a queda do poder eclesiástico como um poder efetivo dentro da sociedade. Em outros modos de sociedade, a gente sabe que a religião não era uma ideologia, mas um modo concreto de organizar a vida social, que tinha a ver com toda a concepção de mundo (e do fazer) destas sociedades. Enfim... mas há outros questionamentos sobre o irracional e tudo, que, digamos, eu ainda "não cheguei lá", por ainda não ter adentrado direito esse estudo.
É mais ou menos por aí que andam os questionamentos, num "caminhar perguntando"... pois "a estrada", meus caros, "vai além do que se vê".
Na verdade, tenho que admitir que não li o debate todo - quando cheguei de viagem, ele já estava aí, e não tive a paciência de ler linha por linha. Me conformei com um "apanhado geral", e, claro, não sem algum pre-conceito do que cada um iria sustentar (por conhecer os debatedores, o que não passou pelo meu crivo eu complementei com a imaginação). Não tomem isso como ofensa ou reducionismo de vossas personalidades, e sim como auto-crítica, pois eu sei os preconceitos são na maioria dos casos insustentáveis. O último texto do Fernando, pelo menos, eu li de cabo à rabo, e com alguma atenção. São vários os aspectos que me chamaram a atenção, e que eu poderia tentar listá-los.
Comecemos pela velha polêmica, ao ponto que eu identifiquei como sendo a questão mudança individual X mudança coletiva.
[Nossa discussão parece passar por ai, em ambos os perigos, o perigo de ser tomado por uma avalanche externa, quer dizer, “o que importa mais são os meios de produção, é o compromisso social, é mudar a pobreza, é mudar a desigualdade entre os homens” e o outro lado, o perigo de “ficar preso em si mesmo, no seu próprio desejo, sua vontade pessoal, no próprio egoísmo e ser incapaz de perceber que está contemplando apenas a sua imagem no espelho”. É certamente fácil reconhecer quais lados podem representar cada parte do mito.]
Acho que esse questionamento já foi feito outra vez, mas gostaria de repetí-lo: seria possível separar ambos os lados (transformação coletiva - transformação individual)? Ou será que existe aí um processo "dialético" de bi-implicação, a transformação individual ensejando a transformação coletiva e vice-versa? Claro, existe a necessidade de converter a estrutura social para um outro "módulo" ou "plano", e por isso quero dizer fazer uma "revolução". Mas não seria também a forma do sujeito, a forma da subjetividade um componente dessa estrutura, ou dos fundamentos dessa estrutura? Quer dizer, à forma de organização social determinada, num plano histórico-cultural, não corresponderia uma subjetividade determinada, ou seja, uma espécie de "ethos" histórico-cultural? Pois a forma do sujeito burguês, ou a constituição capitalista do sujeito (não confundir com 'classe') pressupõe certos valores morais, hábitos, formas de pensar e agir no mundo etc. O sujeito burguês é aquele que funda sua mediação no mundo através da mercadoria, e ao mesmo tempo, através do Direito e do Estado, no que concerne à comunidade. À esse plano de práxis, corresponderia uma certa racionalidade específica (formalizante) etc etc. Isso não é determinismo: não ao ponto de se declarar que não há fuga disso. Na verdade, a necessidade é que haja uma ruptura desse esquema. A individualidade humana alcança expressão até quando reprimida e assujeitada. Mas enfim, essa é outra discussão... O que eu queria colocar é que, se partimos puramente do âmbito social e 'externo' - "o que importa é mudar a sociedade, de modo a erradicar a pobreza e abolir as classes" - não contemplamos a questão no seu todo, e ainda corremos o risco de descambar para uma politica do terror, massificadora e autoritária, stalinista mesmo, insensível ao extremo para com a individualidade. Como se as 'pequenas questões' do cotidiano não fizessem parte da tarefa revolucionária: o amor, as relações pessoais, o prazer e a dor, os sentimentos etc, e tudo que faz parte da individualidade. E aí - em última instância - entramos numa paranóia de acusar a todos de pequeno-burgueses por não quererem sacrificar o pouco que resta de suas vidas para o altar da "Revolução" (com R maiúsculo), como se a revolução fosse algo separado de nós.
No outro extremo, o da "transformação individual", também corre o risco de se fechar sobre si e de se conformar com a existência da ordem (ignorando a máxima de Bakunin, sobre a condição da liberdade individual_esta só se realiza quando contemplada pela liberdade coletiva, universal). Mas ambos os enfoques, quando tornados unilaterais, ignoram, talvez, o questionamento anterior: a forma da subjetividade (a forma de gerir o subjetivo e de se relacionar com o subjetivo) e a forma da sociedade (a estrutura da organização das relações sociais) existem como coisas separadas, distintas, ou formam uma estrutura só (já sem a ladainha da "infra-estrutura" e "super-estrutura")??
[O poder do sujeito é fundamental se queremos uma sociedade libertária, na medida em que apenas este poder pode se contrabalancear a influencia do meio externo, dessa forma não massificando a pessoa, não homogeneizando e assujeitando os cidadãos. É exatamente ai que está a necessidade da descentralização, da multiplicidade de modos de organização e de crenças que o federalismo deve promover. Essas experiências limites, como coloca Bookchin, tem como fundamento não apenas uma mudança no foco propagandístico do anarquismo, mas também é uma forma de libertação dos condicionamentos do sujeito, na medida em que estes não se desfazem por mera sugestão.]
Interpreto da seguinte forma: o "poder do sujeito" quer dizer que a sociedade deveria voltar-se ao sujeito enquanto elemento primordial, e nisso estou de acordo, inclusive com as várias possibilidades que permite um modo federalista de organização social. Também concordo sobre o potencial da autogestão: permitir não só uma modalidade diferente de propaganda ("pela ação"), mas sobretudo um exercício de des-condicionamento, de autonomia, um fazer-se livre por meio da auto-atividade. No entanto, creio que Bookchin coloca a coisa um pouco diferente: projeta tal intenção no municipalismo, na eleição de uma "chapa" que socialize progressivamente o poder público etc. E acho que isso não sai isento de alguma crítica, na medida em que a instância do poder municipal é também uma instância do "poder público", ou seja, um degrau a menos na estrutura do Estado, fundado justamente na separação público-privado, ou seja, na existência da comunidade como algo diferenciado da vida civil e na definição da área de influência dos respectivos poderes - o "privado" (empresas, capital etc) e o "público".
[Não podemos mais considerar o que não é racional, o que é da ordem do “religioso”, da ordem do “místico” ou mesmo da ordem do psicológico ou subjetivo como crendice sem importância, nem mesmo como epifenômeno do mundo externo.]
[Em qualquer local que procure a massificação de seus membros a irracionalidade deve ser abolida, massacrada, mascarada e com ela toda a experiência do desatino que deve ser cerceada e presa de alguma forma. Com ela devemos temer que se leve junto toda a religiosidade e espiritualidade sob o manto de ilusão, contra-natureza e pensamento anti-funcional.]
Bom, como se sabe eu não tenho uma opinião formada sobre isso. Tenho a impressão que a emergência de uma nova sociedade - com muitos "mundos" - traria consigo novas formas de espiritualidade, religiosidade, novos desejos e formas de expressá-los etc. É verdade que o capitalismo varreu toda espiritualidade para um âmbito abstrato precisamente por considerá-la anti-funcional. Disso decorreria, talvez, a transformação da religião em mera 'crença', carregando também - progressivamente - a queda do poder eclesiástico como um poder efetivo dentro da sociedade. Em outros modos de sociedade, a gente sabe que a religião não era uma ideologia, mas um modo concreto de organizar a vida social, que tinha a ver com toda a concepção de mundo (e do fazer) destas sociedades. Enfim... mas há outros questionamentos sobre o irracional e tudo, que, digamos, eu ainda "não cheguei lá", por ainda não ter adentrado direito esse estudo.
É mais ou menos por aí que andam os questionamentos, num "caminhar perguntando"... pois "a estrada", meus caros, "vai além do que se vê".
Um comentário:
é o seguinte...
o comentário é pra dizer que não é comentário...
é só pra dizer que já tô na área...
mas ainda não li o bastante pra descruzar os dedos... que estão coçando.
que polêmica! que polêmica!
arre! vixe!
deixo pra vocês...
mas na rebarba eu solto um chute de bico, pra onde virar o nariz...
mas deixa o texto aguerriano soar um pouco mais... preciso digerir este e os outros.
de início digo que não vou dizer nada de início.
apenas um olá pra meus chapas queridos... polemizadores dialogueiros.
data venia,
fecha a conta,
passa a régua.
ripa na chulipa e pimba na gorduchinha.
até breve.
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