sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Trabalho e Loucura


Um estudo sobre a loucura do trabalho e do trabalho da loucura.

Introdução:

Pretendemos com este pequeno texto abordar de maneira introdutória as relações entre trabalho e loucura, isto é, as múltiplas maneiras dentre as quais estes se relacionaram dentro de um período histórico. Podemos começar dizendo que, pelo menos até o século XVIII, havia uma política institucionalizada da internação de ociosos, vagabundos e mendigos. Internação “justificada”, na medida em que a loucura até então não encontrava plena ligação com a prática médica que, por mais que tenha surgido com o positivismo, ainda permanecia, ao menos no âmbito da psiquiatria, muito ligada a pensamentos místicos, políticos, religiosos ou de influencia imaginária. Portanto, os grandes asilos não eram feitos especialmente aos “loucos”, isto é, aos hoje chamados de loucos, mas o conceito de loucura da época era de tal forma genérico e impreciso que podia abranger toda sorte de sortilégios sociais. Um homem, por exemplo, foi preso no século XVII por não ficar de pé na igreja nas horas corretas. Os mendigos eram presos junto com os vagabundos, os pervertidos, os loucos, etc. “O internamento seria assim a eliminação espontânea dos ‘a-sociais’” (Foucault, 79).

Os donos do asilos durante o século XVII e XVIII eram religiosos de alta conta ou muitas vezes burgueses, especialmente depois que a revolução positivista foi se apropriando do poder de forma mais nítida. Dessa forma o poder burguês ou do clero utilizava-se dos asilos para manter tanto a ordem social, evitando revoltas, tal como para escamotear a fealdade social, e manter a tão “em voga” ordem, razão e harmonia social. E ainda a “loucura”:

Ignorada há séculos, ou pelo menos mal conhecida, a era clássica teria começado a apreendê-la de modo obscuro como desorganização da família, desordem social, perigo para o Estado. E aos poucos esta primeira preocupação se teria organizado, e finalmente aperfeiçoado, numa consciência médica que teria formalizado como doença da natureza aquilo que até então era reconhecido apenas como mal-estar na sociedade (op. cit, 80).

Dessa forma criou-se, através de subterfúgios diversos, uma visão de loucura ampla, conceito tão mal definido que a medida de sua ampliação era a medida de sua indefinição. Todos os a-sociais eram loucos. A partir daí pensou-se em muitas punições e “tratamentos” para esses indivíduos mal vistos e firmemente repudiados a partir da era clássica onde eles perdiam seus entornos míticos, ou talvez, ganhassem uma nova mitologia.

Do trabalho da loucura

Até a Renascença a loucura era percebida em um aspecto transcendente e imaginário, aspecto este que dava conta de suportá-la, pois lá ela era atribuída de sentido. O mundo da Renascença era o mundo ainda povoado de multiplicidades o que viria a mudar na época clássica. Segundo Foucault:

O ‘Cosmos’ da Renascença, tão rico em comunicação e simbolismos internos, dominado inteiramente pela presença cruzada dos astros, desapareceu, sem que a ‘natureza tenha encontrado sua condição de universalidade, sem que acolha o reconhecimento lírico do homem e o conduza no ritimo de suas estações. O que os clássicos retem do ‘mundo’, o que já pressentem ‘natureza’, é uma lei extremamente abstrata, que no entanto constitui a oposição mais viva e mais concreta, a do dia e da noite. Não é a época fatal dos planetas, não é ainda a época lírica das estações; é o tempo universal, mas absolutamente dividido, da claridade e das trevas. (Op cit., 244-245)

Com o advento da era clássica a famosa dualidade retoma seu campo. Luz e escuridão, noite e dia, bom e mau, certo e errado, verdadeiro ou falso. A era clássica, por mais que não possa ser resumida a isto, torna seu caráter maniqueísta explicito. Essa era passa a julgar de maneira muito mais moralizada os sujeitos de sua história, rejeitando os inúteis sociais, isto é, aqueles aos quais não faziam parte da grande comunidade do Trabalho. É aí, portanto, que a loucura começa a sua demarcação que caminha para a contemporaneidade, na era clássica aparece finalmente o conceito de “desatino” que servirá para marcar este lugar, o lugar do louco, do mendigo, daquele que não trabalha e foge dos padrões morais desta sociedade trabalhista, afinal, “qualquer trabalho é melhor do que nenhum”. Dessa forma é justamente:

“nesse outro mundo, delimitado pelos poderes sagrados do labor, que a loucura vai adquirir esse estatuto que lhe reconhecemos. Se existe na loucura clássica alguma coisa que fala de outro lugar e de outra coisa, não é porque o louco vem de um outro céu, o do insano, ostentando seus signos. É porque atravessa por conta própria as fronteiras da ordem burguesa, alienando-se fora dos limites sacros de sua ética”. (op. cit, p.73).

É esse o tempo da ética protestante que toma de assalto o mundo da transcendência e torna-se aos poucos transcendente por si só. Nesse tempo Calvino poderá dizer: “Não tentarás o Eterno, teu Senhor”, e pergunta: “Não querer trabalhar, não é ‘pôr à prova o poder de Deus’?” (Calvino apud Foucault, p.72). O Hospital Geral na França passa por ter a função de impedir a mendicância e a ociosidade, fontes poderosas do mal. Sobre a irradiação do Trabalho como a grande Opus de Deus estão os asilos, que tomarão uma forma de impedimento, não permitindo que os não trabalhadores sejam aceitos pela comunidade e, é justamente:

“nesses lugares da ociosidade maldita e condenada, nesse espaço inventado por uma sociedade que decifrava na lei do trabalho uma transcendência ética, que a loucura vai aparecer e rapidamente desenvolver-se ao ponto de anexá-los” (op. cit: p.73).

É neste local que a loucura toma a antiga posição dos leprosários, lugar onde se alojavam os miseráveis, vagabundos e desempregados, em suma, o mal sócio-espiritual manifestado. De que forma se daria, portanto, uma solução a toda essa espécie de desvairados? Somente através do trabalho obrigatório, com certeza, mas não o mero trabalho, pois ali não existe dissolução entre aspectos econômicos e morais, o objetivo se coloca também como forma de punição até se tornarem mais visíveis as técnicas do “despertar” que serão muito utilizadas no final do século XVIII e no século XIX. Dessa forma podemos observar o hospício além da retenção de subversivos e desatinados:

Mas fora os períodos de crise, o internamento adquire um outro sentido. Sua função de repressão vê-se atribuída de uma nova utilidade. Não se trata mais de prender os sem trabalho, mas de dar trabalho aos que foram presos, fazendo-os servir com isso a prosperidade de todos. A alternativa é clara: mão de obra barata nos tempos de pleno desemprego e de altos salários, e em períodos de desemprego, reabsorção dos ociosos e proteção social contra agitação e revoltas” (op. cit, p. 67).

É ainda nos regulamentos do Hospital Geral que vemos de que forma essa autoridade em forma jurídica se dava em relação à punição (explicitando bem a postura não médica, mas jurídica da internação), segundo este regulamento os diretores do hospital: “Têm todo o poder de autoridade, de direção, de administração, de polícia, jurisdição, correção e punição” (op. cit, 74).

A política então será de internação, de não aceitação dos loucos no espaço social dos burgos, mas estes não-seres deveriam ser colocados num espaço a margem, no hospício. A lógica do hospício, de retenção dos indivíduos que causam perigo ao Estado a lógica mercantil burguesa e a moral judaico-cristã, será mantida por muito tempo. No Brasil, por exemplo, iremos encontrar gigantescas colônias que serviam-se também do trabalho como forma de gerar capital e como forma de tratamento moral.

“Considerando a extensão do Brasil, assistimos a uma proliferação de macrocolônias de alienados por todos os cantos do território nacional, quase todas criadas pelos psiquiatras Juliano Moreira e Adauto Botelho, diretores nacionais de assistência psiquiátrica entre 1910 e 1930, e 1930 e 1940, respectivamente. Em quase todos os estados existem ou existiram manicômios com o nome de um ou de outro, quando não de ambos. A colônia do Juqueri, em São Paulo, foi a maior de todas, chegando a abrigar 16 mil internos” (Amarante).

Aqui já fica evidente que essa política chegou pelo menos até a metade do século XX, onde só foi diminuir após os movimentos anti-manicomiais começados com Basaglia e com os movimentos dos trabalhadores de saúde mental como aconteceu no Brasil. A nova ótica poderia atacar diretamente os mecanismos de exclusão e da instituição total que se criaram, modelos totalitários que seguiam muito a lógica mecânica e anti-individualizante de um grande período da ascensão industrial. Dentro dessa lógica, vimos a violência, os maus tratos e a humilhação das pessoas transformadas em entes e especialmente a naturalização da doença. O que eram espíritos maus que invadiam os acometidos passava a ser doença, o que não deixou suas bases projetivas. A separação sujeito-objeto, se é que houve de fato nesta época, foi muito mais conceitual do que factual.

Ainda no Brasil, Rodrigues Caldas, diretor da colônia Juliano Moreira em 1920, em seu discurso inaugural disse estar pronto para lidar com: "os delicados problemas atuais de higiene e defesa social pertinentes aos deveres do Estado para com os tarados e desvalidados de fortuna, do espírito ou do caráter, para com os ébrios, loucos e menores retardados, ou deliquentes abandonados, assim como para com os indesejáveis inimigos da ordem e do bem público, alucinados pelo delírio vermelho e fanático das sanguinárias e perigosíssimas doutrinas anarquistas ou comunistas".

Aqui temos uma união bombástica, que durou grandes períodos, presos políticos eram misturados com os delinqüentes, os considerados inválidos, os de comportamento aconvencional, os pobres, “loucos”. Todos eram, de fato, uma preocupação do Estado e da ordem burguesa.

Talvez aqui podemos lembrar da origem etimológica de trabalho:

Nos países de língua germânica, a palavra “Arbeit" significa trabalho árduo de uma criança órfã e, por isso, serva. No latim, “laborare” significava algo como o ‘balançar do corpo sob uma carga pesada’, e em geral é usado para designar o sofrimento e o mau trato do escravo. As palavras românicas ‘travail’, ‘trabajo’ etc. derivam-se do latim, ‘tripalium’, uma espécie de canga utilizada para a tortura e o castigo de escravos e outros não livres. A expressão idiomática alemã – ‘canga do trabalho’ (‘Joch der Arbeit’) – ainda faz lembrar este sentido (Krisis, 45-46).

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