quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Picareta descerebrado descruza os dedos



De dedos cruzados.

Amigos, amigos, cá estou... de dedos cruzados.

Acho que às vezes me sinto de dedos cruzados diante dessa criatura chamada "blog".

O teclado à frente, a tela iluminada, aquele turbilhão todo de elétrons... e os dedos estão cruzados.

Mas, quem sabe, ficar de dedos cruzados seja algo que possa ter outras interpretações...

O melhor da ação, o melhor da prática, nosso modo de viver... Tudo pode ser pensado, calculado com as margens de erro consideradas. O plano sendo traçado, a expressão concentrada e os dedos cruzados, dando força, fazendo às vezes de um totem do bom pensamento.

E dedos estão próximos dos braços. E é com dedos cerrados que deferimos o soco cruzado. E quando a agressão não é covarde -- surgindo da legítima defesa, da indignação, da reação a uma coação arbitrária/autoritária -- esse cruzado é necessário.

####

Quero dizer que este blog aqui, que agora adentro de dedo em riste (o verbo "penetrar" pegaria mal), tem o melhor sentido para "dedos cruzados": o daquela reunião salutar, preferencialmente regada com boa cerva, donde saltitam diálogos casuais.

Sim... diálogos casuais!

Diálogos parideiros, gerando pentelhinhas filhas: as polemiquetes.

Polêmicas! Pôlemicas!

####

Caras... eu nem queria entrar nessa polêmica...

Anarquismo social X anarquismo ontológico.

Será que a gente pode resumir a pendenga nesses termos?

Será que devem ser necessariamente excludentes, dicotômicos, apartados?

No, no, no... pero... já vimos o filme da contracultura, das diversas "mortes da história", da proeminência do eu, da fragmentação das totalidades, das múltiplas identidades, do fim da luta de classes ("agora tudo é uma pá de identidades urbano-tribais numa aldeia global multiculturalista super pós, falou?" u-hu!)...

Não podemos ser ingênuos e não observar como o sistema se aproveita de linguagens para melhor absorver o setor radical da sociedade. E os movimentos dos anos 60 entregaram muito o ouro para o bandido.

Mas, como já disse o grande Castoriadis, a herança positiva desses movimentos pulsa ainda hoje. As iluminações de Bey são pertinentes. Seu conceito TAZ é bem adequado ao atual quadro de extremo controle e vigilância.

Além disso, não podemos e não devemos abandonar a trilha de contestação ao primado da cega razão, da ciência, da cosmovisão ocidental etc, etc. Portas abertas a outros saberes, percepções, iluminações, intuições.

Contudo, a iconoclastia irracionalista não deve ser generalizada, exagerada. Pois, ora raios!, estamos discutindo tudo isso racionalmente, não é mesmo? Ou estou errado?

Muitos acabam tendo... razão (olha ela de novo!) quando insistem em enfatizar o adjetivo "social", que marca o que há de melhor no anarquismo. Se não houvesse aquele revolucionarismo de butique, aquele engajamento ao nível estético, existencial, apenas, eu disse "apenas", com um forte pezão num individualismo pequeno-burguês... se não houvesse isso até poderíamos não reforçar o termo "social", que para mim é a razão (de novo!) de ser do anarquismo.

Penso que há todo momento devam existir Bookchins e Beys, uns para lembrar aos outros que os extremos devem ser evitados. Não existe indivíduo fora da sociedade, não existe indivíduo sem história.

Da mesma forma não há revolução social sem a simultânea e necessária revolução individual, moral, comportamental... e coisa e tal.

####

Peço desculpas pela superficialidade dessas observações fast-food. Falta-me inclusive um embasamento maior na leitura desses autores.

Confesso a minha picaretagem ao adentrar nessa questão, pois li tudo de rabo de ôio, de soslaio, captando aqui e ali alguma coisa voadora.

No final das contas, muito do que foi dito eu teria dito, com outras palavras.

####

Putz... que comentário picareta!


####

Mas uma coisa me soou muito bem, algo dito pelo Fernando: "Ainda há vida por entre Bey e Bookchyn, no meio, intermezzo."

E é nesse meio, nessa "racha" que eu vou. Digerindo Bookchin, Bey, Bakunin... cuspindo algum rearranjo que seja diferente desses caras, mas com alguma coisa em comum.

Contudo, porém, entretanto... inclino-me ao balanço indivíduo/sociedade num vai-e-vem sempre tenso, aberto, por construir, nas esburacadas vielas do devir... Mas se não sinto o que Durden falou, ou seja, aquele investimento na "questão coletiva a partir de experiências concretas"...

Opa! "Anarco-pop" por si só é coisa vazia demais!

E Guerra, com a combatividade verborrágica que lhe é peculiar, dá o arremate necessário, por meio de uma pergunta à queima-roupa:

"Mas ambos os enfoques, quando tornados unilaterais, ignoram, talvez, o questionamento anterior: a forma da subjetividade (a forma de gerir o subjetivo e de se relacionar com o subjetivo) e a forma da sociedade (a estrutura da organização das relações sociais) existem como coisas separadas, distintas, ou formam uma estrutura só (já sem a ladainha da "infra-estrutura" e "super-estrutura")??"

####

Urru!

Como o ciborgue RanXerox, desligo meu cérebro e cruzo meus dedos por enquanto... Amanhã, quem sabe, reinicio a caixola pra pensar um pouco mais sobre tudo isso.

Clic!

Bzzzzzzzzzz....bzzzzzzzzz.... bzzzzzzzzzzzzz....

####

terça-feira, 21 de agosto de 2007

Bom, como não desejo me esquivar da discussão, e já não podendo ignorá-la (dada a sua proporção), venho a público no intento de dar minha contribuição à polêmica. Não conheço nenhum dos dois autores profundamente (muito menos o H. Bey, que até hoje estou devendo de ler), e o pouco que li do Bookchin (na sua discussão sobre municipalismo libertário) não me dá muita noção do mesmo. No entanto, considerando que a discussão já foi além dessa dualidade, creio ter que me declarar sobre alguns aspectos. O primeiro ponto que tenho a dizer é que, embora possa parecer o contrário, não tenho ojeriza à Bey e ao anarquismo ontológico: posso até me abrir francamente e dizer que toda minha opinião sobre isso é baseada em preconceitos... preconceitos, porém, que eu acho que têm a sua razão de ser, mas que não se justificam por isso. Pois até onde eu vasculhei - "passei os olhos" - os textos do Bey, ele é até muito interessante, na sua tentativa de redefinir a "revolução" à contrapelo da esquerda tradicional, masoquista ('marxoquista', diria o Fernando) e obreirista até os ossos. O que me afasta de uma abertura maior é justamente a leitura que eu vejo as pessoas fazerem do H. Bey - uma leitura descompromissada, "aventureira", modista. Pois a Baderna, no fundo, como subseção (ou seja lá o que for) da Ed. Conrad, é uma editora capitalista como qualquer outra, interessada em vender as suas mercadorias. E ela assim o faz, empacotando seus livros numa embalagem "subversiva", tudo voltado para um público de infanto-juvenis consumidores da revolução. Não acho que seja o caso de ninguém por aqui, pelo contrário, nem que seja o caso de boicotarmos a Baderna. O problema é não ter esse distanciamento crítico; ou pior, tomar as teorias do Bey e, sem mediação alguma, tentar aplicá-las diretamente na realidade como uma espécie de lazer de fim de semana. Com isso se condena algo que poderia ser uma proposta interessante (o terrorismo poético, as ZAT's, etc) a ser um fim em si mesmo, um mero momento de "descontração". Não que eu seja a favor do militantismo 'duro' e 'compromissado', pelo contrário: é a racionalidade capitalista de organização do trabalho - este algoz de todos nós - que insiste em separar o "sério" do "frívolo", o "laborar" do "brincar". Dito isto, desmanchado os preconceitos (também aqueles que se sustentam contra mim), devo passar adiante.

Na verdade, tenho que admitir que não li o debate todo - quando cheguei de viagem, ele já estava aí, e não tive a paciência de ler linha por linha. Me conformei com um "apanhado geral", e, claro, não sem algum pre-conceito do que cada um iria sustentar (por conhecer os debatedores, o que não passou pelo meu crivo eu complementei com a imaginação). Não tomem isso como ofensa ou reducionismo de vossas personalidades, e sim como auto-crítica, pois eu sei os preconceitos são na maioria dos casos insustentáveis. O último texto do Fernando, pelo menos, eu li de cabo à rabo, e com alguma atenção. São vários os aspectos que me chamaram a atenção, e que eu poderia tentar listá-los.

Comecemos pela velha polêmica, ao ponto que eu identifiquei como sendo a questão mudança individual X mudança coletiva.

[Nossa discussão parece passar por ai, em ambos os perigos, o perigo de ser tomado por uma avalanche externa, quer dizer, “o que importa mais são os meios de produção, é o compromisso social, é mudar a pobreza, é mudar a desigualdade entre os homens” e o outro lado, o perigo de “ficar preso em si mesmo, no seu próprio desejo, sua vontade pessoal, no próprio egoísmo e ser incapaz de perceber que está contemplando apenas a sua imagem no espelho”. É certamente fácil reconhecer quais lados podem representar cada parte do mito.]

Acho que esse questionamento já foi feito outra vez, mas gostaria de repetí-lo: seria possível separar ambos os lados (transformação coletiva - transformação individual)? Ou será que existe aí um processo "dialético" de bi-implicação, a transformação individual ensejando a transformação coletiva e vice-versa? Claro, existe a necessidade de converter a estrutura social para um outro "módulo" ou "plano", e por isso quero dizer fazer uma "revolução". Mas não seria também a forma do sujeito, a forma da subjetividade um componente dessa estrutura, ou dos fundamentos dessa estrutura? Quer dizer, à forma de organização social determinada, num plano histórico-cultural, não corresponderia uma subjetividade determinada, ou seja, uma espécie de "ethos" histórico-cultural? Pois a forma do sujeito burguês, ou a constituição capitalista do sujeito (não confundir com 'classe') pressupõe certos valores morais, hábitos, formas de pensar e agir no mundo etc. O sujeito burguês é aquele que funda sua mediação no mundo através da mercadoria, e ao mesmo tempo, através do Direito e do Estado, no que concerne à comunidade. À esse plano de práxis, corresponderia uma certa racionalidade específica (formalizante) etc etc. Isso não é determinismo: não ao ponto de se declarar que não há fuga disso. Na verdade, a necessidade é que haja uma ruptura desse esquema. A individualidade humana alcança expressão até quando reprimida e assujeitada. Mas enfim, essa é outra discussão... O que eu queria colocar é que, se partimos puramente do âmbito social e 'externo' - "o que importa é mudar a sociedade, de modo a erradicar a pobreza e abolir as classes" - não contemplamos a questão no seu todo, e ainda corremos o risco de descambar para uma politica do terror, massificadora e autoritária, stalinista mesmo, insensível ao extremo para com a individualidade. Como se as 'pequenas questões' do cotidiano não fizessem parte da tarefa revolucionária: o amor, as relações pessoais, o prazer e a dor, os sentimentos etc, e tudo que faz parte da individualidade. E aí - em última instância - entramos numa paranóia de acusar a todos de pequeno-burgueses por não quererem sacrificar o pouco que resta de suas vidas para o altar da "Revolução" (com R maiúsculo), como se a revolução fosse algo separado de nós.

No outro extremo, o da "transformação individual", também corre o risco de se fechar sobre si e de se conformar com a existência da ordem (ignorando a máxima de Bakunin, sobre a condição da liberdade individual_esta só se realiza quando contemplada pela liberdade coletiva, universal). Mas ambos os enfoques, quando tornados unilaterais, ignoram, talvez, o questionamento anterior: a forma da subjetividade (a forma de gerir o subjetivo e de se relacionar com o subjetivo) e a forma da sociedade (a estrutura da organização das relações sociais) existem como coisas separadas, distintas, ou formam uma estrutura só (já sem a ladainha da "infra-estrutura" e "super-estrutura")??

[O poder do sujeito é fundamental se queremos uma sociedade libertária, na medida em que apenas este poder pode se contrabalancear a influencia do meio externo, dessa forma não massificando a pessoa, não homogeneizando e assujeitando os cidadãos. É exatamente ai que está a necessidade da descentralização, da multiplicidade de modos de organização e de crenças que o federalismo deve promover. Essas experiências limites, como coloca Bookchin, tem como fundamento não apenas uma mudança no foco propagandístico do anarquismo, mas também é uma forma de libertação dos condicionamentos do sujeito, na medida em que estes não se desfazem por mera sugestão.]

Interpreto da seguinte forma: o "poder do sujeito" quer dizer que a sociedade deveria voltar-se ao sujeito enquanto elemento primordial, e nisso estou de acordo, inclusive com as várias possibilidades que permite um modo federalista de organização social. Também concordo sobre o potencial da autogestão: permitir não só uma modalidade diferente de propaganda ("pela ação"), mas sobretudo um exercício de des-condicionamento, de autonomia, um fazer-se livre por meio da auto-atividade. No entanto, creio que Bookchin coloca a coisa um pouco diferente: projeta tal intenção no municipalismo, na eleição de uma "chapa" que socialize progressivamente o poder público etc. E acho que isso não sai isento de alguma crítica, na medida em que a instância do poder municipal é também uma instância do "poder público", ou seja, um degrau a menos na estrutura do Estado, fundado justamente na separação público-privado, ou seja, na existência da comunidade como algo diferenciado da vida civil e na definição da área de influência dos respectivos poderes - o "privado" (empresas, capital etc) e o "público".

[Não podemos mais considerar o que não é racional, o que é da ordem do “religioso”, da ordem do “místico” ou mesmo da ordem do psicológico ou subjetivo como crendice sem importância, nem mesmo como epifenômeno do mundo externo.]

[Em qualquer local que procure a massificação de seus membros a irracionalidade deve ser abolida, massacrada, mascarada e com ela toda a experiência do desatino que deve ser cerceada e presa de alguma forma. Com ela devemos temer que se leve junto toda a religiosidade e espiritualidade sob o manto de ilusão, contra-natureza e pensamento anti-funcional.]

Bom, como se sabe eu não tenho uma opinião formada sobre isso. Tenho a impressão que a emergência de uma nova sociedade - com muitos "mundos" - traria consigo novas formas de espiritualidade, religiosidade, novos desejos e formas de expressá-los etc. É verdade que o capitalismo varreu toda espiritualidade para um âmbito abstrato precisamente por considerá-la anti-funcional. Disso decorreria, talvez, a transformação da religião em mera 'crença', carregando também - progressivamente - a queda do poder eclesiástico como um poder efetivo dentro da sociedade. Em outros modos de sociedade, a gente sabe que a religião não era uma ideologia, mas um modo concreto de organizar a vida social, que tinha a ver com toda a concepção de mundo (e do fazer) destas sociedades. Enfim... mas há outros questionamentos sobre o irracional e tudo, que, digamos, eu ainda "não cheguei lá", por ainda não ter adentrado direito esse estudo.

É mais ou menos por aí que andam os questionamentos, num "caminhar perguntando"... pois "a estrada", meus caros, "vai além do que se vê".

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Eco e Narcíso: Bookchin e Bey: parte II, abertura para discussões


Meu amigo Durden respondeu meu 1º post sobre a polemica Bey-Bookchin de maneira tesuda e, como sempre, tenho meus acordos e desacordos, sejam eles mutantes ou paralíticos. Não quero ficar preso a história, procuro intencionalmente em meus textos tocar a história sem me deixar envolver por ela. A história não determina o homem. Mas vamos ao que deve ser dito e deixemos de delongas, de fato, o que eu gostaria de falar é sobre um mito, o mito de Eco e Narciso. Eu darei a base do mito, baseado no livro Mitologia Grega do Junito Brandão, para que eu posso prosseguir com minha argumentação. Não uma argumentação explicitamente sobre o tema, mas procurarei seguir um fio, mesmo que se perca a linha da discussão original.

Narciso era filho do rio Cefiso, em grego Κηφισος (Képhisos), “o que banha, o que inunda” e da Nina Liríope, que talvez signifique voz macia como um lírio. O fato é que Narciso era belíssimo, mais belo que os deuses, que os imortais e tal beleza na Grécia assustava, pois se tratava da já citada desmèsure, a hýbris. Sua mãe preocupada com quantos anos viveria seu filho, devido a este fato, acabou por procurar Tirésias, que possuía o dom da mantéia, da adivinhação. A resposta para a pergunta “Meu filho viverá muitos anos?” foi: “si non se uiderit” (se ele não se vir).

As grandes paixões do jovem começam, jovens da Grécia inteira e ninfas estavam presas a beleza de Narciso, que a tudo ficava indiferente; dentre as jovens estava a jovem ninfa Eco. Eco, que era uma ninfa muito tagarela, subiu ao Olimpo, lá em cima Zeus que queria dar suas escapadelas na terra – para viver seus romances – não sabia como passar a perna em sua esposa Hera. Desesperado, Zeus lembrou de Eco, a esposa seria distraída pela ninfa enquanto ele dava seus passeios. Tudo corria bem, mas a ciumenta Hera, “a defensora dos amores legítimos”, por fim, desconfiou, e sabedora do porquê da loquacidade de Eco, condenou-a a não mais falar: repetiria tão-somente os últimos sons das palavras que ouvisse.
Mas Eco estava apaixonada demais e seguira Narciso que havia saído com os amigos para uma caçada, num dado momento Narciso se perde dos amigos e grita a procura deles. Transcrevamos uma parte do dialogo:

“Dos sócios seus na caça extraviado
Narciso branda: Olá! Ninguém me escuta?
Escuta, lhe responde a amante Ninfa.
Ele pasma: em redor estira os olhos;
E, não vendo ninguém: Vem cá, lhe grita;
Convite igual ao seu parte dela.
Volta-se, nada vê: Por que me foges?
Clama; Por que me foges? Lhe respondem.
Da mútua voz deluso, insiste ainda:
Juntemo-nos aqui, vozeia em ânsias
De o pôr por obra; da espessura rompe,
Vem de braços abertos, anelando,
Tão suspirado objeto, alfim colhê-lo,
Ele foge; fugindo, ilude o abraço,
E Antes, diz, morrerei, que amor nos una.
Ela, imóvel, co´a vista o vai seguindo,
E, ao que ouviu, só responde: Amor nos una”.

Eco friamente repelida foge e se fecha em solidão, deixa de se alimentar e finalmente definha. Transforma-se num rochedo, capaz apenas de repetir os derradeiros sons do que se diz. As demais ninfas, irritadas com a insensibilidade do filho de Liríope, pediram vingança ao Nêmesis – o qual citamos no outro texto – que, prontamente, condenou Narciso a amar um amor impossível.

No verão Narciso se aproxima das límpidas e intocadas águas da fonte de Téspias para mitigar a sede. Debruçou-se sobre o espelho imaculado das águas e viu-se. Viu a própria imago, a própria umbra (sombra) refletida no espelho da fonte de Téspias. Viu-se e não pôde mais sair dali: apaixonara-se pela própria imagem. Lembremos uma parte da passagem:

“Deitou-se e tentando matar a sede,
Outra mais forte achou. Enquanto bebia,
Viu-se na água e ficou embevecido com a própria imagem.
Julga corpo, o que é sombra, e a sombra adora.
Extasiado diante de si mesmo, sem mover-se do lugar,
O rosto fixo, Narciso parece uma estátua de mármore de Paros.
Deitado, contempla dois astros: seus olhos e seus cabelos,
Dignos de Baco, dignos também de Apolo;”

Quer dizer, Narciso acaba por prender-se em si mesmo ao olhar-se no espelho, é incapaz de voltar a sociedade, de viver de fato e acaba por se tornar a linda flor narciso. Segundo interpretação de Murray Stein o mitologema de Narciso é baseado num tabu contra a vaidade (o excessivo auto-amor) e no horror do solipsismo (o eu como única realidade). Nossa discussão parece passar por ai, em ambos os perigos, o perigo de ser tomado por uma avalanche externa, quer dizer, “o que importa mais são os meios de produção, é o compromisso social, é mudar a pobreza, é mudar a desigualdade entre os homens” e o outro lado, o perigo de “ficar preso em si mesmo, no seu próprio desejo, sua vontade pessoal, no próprio egoísmo e ser incapaz de perceber que está contemplando apenas a sua imagem no espelho”. É certamente fácil reconhecer quais lados podem representar cada parte do mito. Evidentemente no mito tratamos de exageros. O próprio olhar no espelho é olhar seu reflexo, palavra que vem reflectere de re- “novamente” e flectere- “curvar-se”, donde chegamos a “voltar para trás”. No entanto o ato de Narciso é não só um voltar para trás, mas um voltar para dentro (a libido cessa de voltar-se ao objeto, voltando-se ao sujeito).

Já que falamos de exageros, que sejamos exagerados. Lembramos da religiosidade de Bey, na verdade algo como uma espiritualidade anti-autoritária, um desejo de dar todo poder ao sujeito. O poder do sujeito é fundamental se queremos uma sociedade libertária, na medida em que apenas este poder pode se contrabalancear a influencia do meio externo, dessa forma não massificando a pessoa, não homogeneizando e assujeitando os cidadãos. É exatamente ai que está a necessidade da descentralização, da multiplicidade de modos de organização e de crenças que o federalismo deve promover. Essas experiências limites, como coloca Bookchin, tem como fundamento não apenas uma mudança no foco propagandístico do anarquismo, mas também é uma forma de libertação dos condicionamentos do sujeito, na medida em que estes não se desfazem por mera sugestão. É aí também onde surge a necessidade de uma cosmovisão compromissada com a realidade interna, introvertida, intuitiva e mesmo irracional. Não podemos mais considerar o que não é racional, o que é da ordem do “religioso”, da ordem do “místico” ou mesmo da ordem do psicológico ou subjetivo como crendice sem importância, nem mesmo como epifenômeno do mundo externo. Lembremos do Selbst (si-mesmo) que Jung busca nos Upanixades é o encontro não apenas do que há de mais único em nós mesmos, mas é uma ligação visceral com todo nosso entorno, com todas as pessoas que fazem parte dessa sociedade e o nosso mito individual só pode se dar no coletivo.

Tanto o Estado como a Sociedade são conceitos abstratos usados muitas vezes para manipulação e construção de poderes separados, o em cima e o embaixo, toda a hierarquia ou massificação possíveis. Por exemplo, o Estado é construído e auto-legitima-se, quer dizer, os seres humanos (únicos dotados de vida) que controlam este poder criam instancias e mecanismos de controle de toda uma rede social, acabando por naturalizar o seu poder, do outro lado, a “Sociedade”, enquanto conceito, foi utilizada para unir massas de pessoas indiferenciadas. Em qualquer local que procure a massificação de seus membros a irracionalidade deve ser abolida, massacrada, mascarada e com ela toda a experiência do desatino[1] que deve ser cerceada e presa de alguma forma. Com ela devemos temer que se leve junto toda a religiosidade e espiritualidade sob o manto de ilusão, contra-natureza e pensamento anti-funcional.

Evidente que tratamos aqui de um assunto e fomos muito alem de Bookchin e Bey, certamente Bookchin não é um “mero positivista” ou “massificador”, tal como Bey não chega a ser um “Narciso”, mas nos valemos das oposições para tratar do assunto. Se o sujeito não admite ser ele mesmo uma condição de autoridade, algo inserido, mas além das relações sociais, além da abstrata sociedade, ele estará fadado a se perder na teia das relações sociais, ser dissolvido nessas relações. Ao mesmo tempo o egoísta é um alienígena caído de paraquedas no mundo, uma miragem autista presa em seu auto-engano. Se for ao ponto de não poder ajudar ninguém, ou melhor, se relacionar com ninguém senão consigo mesmo essa sua liberdade não será senão sua própria prisão, dessa forma será um grande covarde que não permite ser mordido pela vida, ser modificado e modificar nesta relação.

Se procuro o mito de Eco, que a tudo repete, e Narciso, que se prende em si, para falar sobre as figuras e os combates entre o social e o individual é porque me parece ser necessário um ponto do meio, no entanto, vejam bem, não estou aqui a defender um único caminho, mas uma meta que dê conta da diversidade do anarquismo social e do anarquismo ontológico ou religioso. Não acredito que devemos estar neste ponto do meio como forma de perfeição ou glória, mas muitas vezes é preciso se encontrar nos extremos para aprender com a vida, muitas vezes é necessária aquela típica unilateralidade e os esbravejamentos dogmáticos: “Deus não existe! O anarquista só pode ser ateu!” ou “O fundamento do mundo libertário é a bondade de Deus e apenas isso, nada mais é válido”. Claro que não podemos considerar este movimento, tipicamente cerceador, como a teleologia libertária. Minha meta como anarquista é ampliar os limites de aceitação da alteridade e procurar romper toda sociedade baseada no poder-sobre, na hierarquia, no Estado, na dominação das pessoas e da natureza, é romper através do fogo e da integração o próprio fascista que ronda dentro de mim.







[1] - Para o conceito de desatino ver Foucault em História da Loucura.