sexta-feira, 22 de junho de 2007

Palavras sobre a crítica do trabalho

Em primeiro lugar, por que a crítica do trabalho? Tantas vezes temos feito essa discussão e no entanto sempre a terminamos sentindo que havia muito mais pra discutir. A crítica do trabalho é um tópico delicadíssimo, um dos mais delicados, porque sempre envolve polêmicas do tipo antropológica. É claro que a crítica do trabalho não quer dizer crítica da atividade produtiva ou da atividade humana em geral, muito pelo contrário. Os promotores mais fortes da crítica do trabalho - os alemães do grupo Krisis, e agora do grupo Exit! - têm defendido que o trabalho não pode ser jamais confundido com o fazer humano, pois trata-se de uma forma específica e historicamente localizada deste fazer. Num primeiro momento, pode-se achar até que se trata de humor. A idéia de uma "crítica do trabalho" é a tal ponto escandalosa que provoca risos na consciência fetichizada da sociedade da mercadoria. Mas é preciso "pensar o impensável", descondicionar o pensamento, e é a isso que vem o "Manifesto Contra o Trabalho" (e toda a discussão subsequente). A crítica social tradicional da esquerda jamais pensou em tais termos. Preferiu deixar o dogma social intacto, ou o que é ainda pior, em muitas ocasiões tornou-se propagandista moral do trabalho, fazendo uníssono com a direita. Isso porque acreditava - e continua a acreditar nos dias de hoje... - que o trabalho é algo de oposto ao capitalismo, tanto como "valor moral" quanto como sujeito. No primeiro caso, parte-se de um equívoco: considerar que o exercício de mando no capitalismo é similar ao status de senhor na sociedade feudal. Mas ora, basta dar uma olhada no mundo de hoje para ver que os que mais se matam de trabalhar são justamente os nossos "empreendedores", principalmente os de grande porte. Eles estão sob pressão da concorrência e não podem perder um minuto sequer, nem para aproveitar a sua fortuna. Tudo isso decorre de outro tópico: a dominação no capitalismo se diferencia essencialmente por ser uma espécie de "dominação sem sujeito", onde o posto de sujeito é ocupado pelo dinheiro-capital. Já no segundo caso, a considerar que a "classe trabalhadora" é o sujeito revolucionário por excelência seria desconsiderar que a própria "classe trabalhadora" é uma categoria constituída no interior do capital. Mas isso deixemos para depois.

Em primeiro lugar, é preciso identificar o trabalho como uma instituição social de validade histórica: outros tipos de sociedade não conheceram o trabalho. Havia toda sorte de atividades a serem executadas, mas não existia um princípio universal que moldava as relações sociais segundo suas próprias exigências. Princípio universal porque se trata realmente de um princípio prático e conceptivo que não abriga particularidade alguma - "trabalhar" vale sempre para qualquer tipo de atividade, desde que organizada segundo os moldes da racionalidade empresarial (depois falaremos sobre as outras concepções possíveis de trabalho). O trabalho não tem fisionomia. Por isso não tem sentido falar em "trabalho abstrato", pois o trabalho é já uma figura abstrata. Como diz Marx, ele "desfigura a fisionomia" de todo tipo de atividade ao assumí-las enquanto conteúdo. É este princípio universal - do qual decorre outro, o dinheiro, sua materialização... - que estrutura a vida moderna mais do que qualquer coisa. Ele define as necessidades sociais muito antes das necessidades essenciais dos indivíduos, de forma que toda a vida social é organizada em torno do trabalho. Dizia eu que em outros tipos de sociabilidade não existe um princípio universal que regulariza toda a vida social. As atividades necessárias a reprodução social existem, obviamente, mas nenhuma delas se encaixa num modelo abstrato e separado da vida. O trabalho não existe em tais sociedades. Não se pode observar nenhum puro e simples "dispêndio de energia humana" subsistindo fora e ao lado do relacionamento social (e por isso "abstrato", separado). Isso acontece na mediação universal do dinheiro, por exemplo - ele representa um gasto nada preciso de força de trabalho. Por isso pode-se trocá-lo por outra soma qualquer de gasto de força de trabalho, desde que equivalente.

Numa de nossas discussões, foi questionado se a cisma não era na verdade contra o conceito de "trabalho", pois que um conceito pode guardar muitos outros. Devo dizer que concordo em parte. Não se deve cristalizar o conceito, e nisso eu concordo. Ter "mão ferréa" para com o conceito implica cair num certo "dogmatismo conceptual" que pode obstruir qualquer discussão. Eu entenderia perfeitamente o que o Fernando quis dizer, por exemplo, não final de seu último texto, rechaçando o "trabalho mecânico", pontual e assassino, e fazendo assim diferenciação. É claro para mim que ele se pronuncia contra o trabalho capitalista, e por uma forma mais integral de realizar o "metabolismo com a natureza". Porém, é preciso lembrar duas coisas: a primeira é que não existe um equivalente para o trabalho nas sociedades não-capitalistas justamente porque não existe nenhum tipo de atividade disforme e separada do contexto social. Quando a sociedade é capaz de organizar as atividades ou os fazeres mantendo sua unicidade, já não há "atividade" ou "fazer", apenas o que há de concreto (embora abstrato, já que continuam sendo palavras... e conceitos) - jogar bola, dormir, ler, pintar, cozinhar etc. Em segundo lugar, é preciso chamar por uma breve citação de H. Lefebvre - "Transformar o cotidiano é produzir algo novo que pede palavras novas".

Outra questão que veio à tona foi sobre a confusão entre o fazer propriamente dito e o trabalho abstrato. É perceptível um certo desejo na crítica dos alemães de suprimir também o trabalho enquanto fadiga, e nesse sentido há ambiguidade da crítica. Reitero o que eu provavelmente disse na mesa: o que Kurz e cia. põe em questão é que, partindo do desenvolvimento técnico atual, poderíamos muito bem reorganizar uma série de atividades suprimindo-lhe o caráter fatigante, e até mecanizar muitas coisas, de forma a liberar as pessoas para atividades mais dignas. O potencial emancipatório da tecnologia foi algo colocado em muitas discussões socialistas (Marx discutiu-o muito bem). O que entrava este potencial é justamente o sistema produtor de mercadorias, na medida em que organiza tal potencial pelo viés da racionalidade empresarial, tudo para tirar a maior taxa de mais-valia possível do trabalhador/a e causando desemprego em massa. É claro que nem tudo poderia ser utilizado para uma futura sociedade libertária, pois que muitas das técnicas são puro fetiche, poluentes e pré-concebidas já segundo os moldes da exploração, e aqui entra outra discussão. Mas em geral, gosto de lembrar também de Bakunin sobre o efeito liberatório da civilização - é o trabalho coletivo e contínuo de todas as gerações (e aqui ele fala de trabalho como atividade em geral) que permite uma autonomia cada vez maior do gênero humano em relação à natureza, e isso é positivo, porque traz outras possibilidades para os indivíduos.

A crítica do trabalho, portanto, não é nenhuma "cisma", e sim um assunto sério que deve ser discutido nos círculos libertários e da esquerda que se pretende renovar frente ao fracasso que foi a experiência do "socialismo real". Para isso servem não só Kurz e seus companheiros, mas também poderíamos lembrar o próprio Marx (o Marx "esotérico") e algumas boas intuições dos situacionistas.


3 comentários:

A. Guerra disse...

... E todos os anarquistas que se recusam a se curvar ao trabalho, vide Bob Black!

Fernando Beserra disse...

uhahua, esse txt é muito legal, e me faz lembrar a velha e boa mesa de bar..

De qualquer forma, o que está em questão é muito pertinente, é importantíssimo que se discuta o trabalho, desde o trabalho mecanico, alienado até um trabalho livre, integrado socialmente (rs). Ok, não precisamos chamar a isso trabalho, né? Se é o de menos ou não é outra discussão, a discussão sobre le pouvoir de la langue... Afinal, buceta ou vagina? Caralho ou penis?

Não gostaria de me prender no momento nessa imagem, mas sim discutir o conteúdo. Acho formidavel a crítica ao trabalho e vem em boa hora, onde nos tornarmos muitas vezes escravos da moral protestante e do trabalho propriamente dito, mesmo que totalmente alienado de finalidade... trabalha-se para ganhar dinheiro, mas o trabalho não tem finalidade social alguma, distribui-se panfletos adoidado para fazer marketing, totalmente entediante...

No entanto, sobre a questão da "libertação" através das maquinas, da diminuição do trabalho enquanto fazeção acredito que isso não pode ser colocado como imperativo, os "comunados", "zoneados" ou "associados" que devem decidir sobre essas questões. É extremamente possível dentro de uma sociedade livre uma area em que as pessoas "trabalhem" muito. Não há necessariamente algo de prejudicial nisso... o estranho se torna quando estes que assim fazem por necessidade própria, ou desejo próprio, exigem mais beneficios que os outros... afinal, a questão deixa de ser compreendida da maneira costumeira "trabalho = encheção de saco" e passa a ser fazeção prazeirosa, ao menos, espera-se que mais do que atualmente (pq não alienada).

Anônimo disse...

É que na verdade a questão da liberação do "tempo livre" não é um imperativo, e sim uma possibilidade. Nada impede que indivíduos se associem e, possuindo os meios para tal, se dediquem a atividades manuais. Eles não estariam fazendo mais do que resguardar a sua individualiadade.

Seria ridículo que uma sociedade mais afrouxada em relação à necessidade adotasse uma moral do "tempo livre". A diferença é que, com a técnica presente, sendo ela operada por um módulo racional e sensível às necessidades humanas, as possibilidades seriam mais.
Todo mundo ia dispor de um tempo desvinculado da produção necessária para aproveitá-lo da melhor forma possível (é onde se daria o exercício contínuo de nossas individualidades). E é bem capaz mesmo das atividades se tornarem mais prazeirosas, quando não estiverem mais sob a sombra da alienação.