Palavras, faladas, escritas, conversadas...
Retomando (ou "começando" de fato, posto que é um livro [1] que não manuseava há quase dez anos) a leitura de “Conversações” (Editora 34, 1992), de Gilles Deleuze, me deparo com uma frase chapante, que me faz despertar do longo sono letárgico (talvez até lisérgico), que me fez calar diante dos casuais diálogos aqui arrolados na barra de rolagem. Eis o trecho:
“Escrever é um fluxo entre outros, sem nenhum privilégio em relação aos demais, e que entra em relações de corrente, contra-corrente, de redemoinho com outros fluxos, fluxos de merda, de esperma, de fala, de ação, de erotismo, de dinheiro, de política, etc.” (p.17).
Maravilha!
Comecei a pensar que eu, paralisado no meu não-escrever (algo que me paralisa também no meu espaço kAto nigrA, entregue às moscas virtuais), estava me confinando por, talvez, dar importância demais ao “fluxo-escrita”, por achar que ele haveria de ser pomposo, importante, digno de uma prévia preparação para que saltasse ao meio seja-lá-qual-fosse (web, papel, guardanapo...), trajando, no mínimo, uma roupinha “esporte-fino”.
Bobagem!
Deleuze, esse filósofo que bem pouco conheço (como bem pouco conheço todos os filósofos), esse francês, parceiro de Guattari, que, de certa forma, ri dessa atividade escrevinhadora, dessa pompa acadêmica da filosofia ou de qualquer outro conhecimento entronizado.
No texto que li (uma carta, de
Falando de seu livro em parceria com Guattari (“O anti-Édipo”), ele dispara:
“(...) ele é ainda bem acadêmico, bastante comportado, e não chega a ser pop’filosofia ou a pop’análise sonhadas. Mas surpreende-me o seguinte: os que acham sobretudo que este livro é difícil são aqueles com mais cultura, principalmente cultura psicanalítica. [...] os que sabem pouca coisa, os que não estão envenenados pela psicanálise têm menos problemas, e deixam de lado o que não entendem sem preocupação”. (p.16)
Beleza!
Não sei quase nada sobre Deleuze. Não sei se o que ele disse depois disso valeu a pena. Mas posso dizer – com base nessas palavras apenas – que ele mandou bem. Muito bem.
Acho que vai um pouco ao encontro do post anterior, sobre a miséria dos meios universitários (e de tantos outros). Sobre essa empáfia intelectual dos professores, a síndrome de baba-ovação [2] dos aluninhos, a encenação lustrosa de quem surfa pelas ondinhas intelectuais do momento, etceteras e tais.
Chatices!
Lembro até hoje dos aluninhos do curso de história da UFF a babar por causa do tamanho do (opa!) currículo Lattes (ah, bom!) de Ciro Flamarion Cardoso... chamado de “deus” porque saca de língua egípcia, fala sobre ficção científica, disserta facilmente sobre economia colonial, vomita conhecimentos sobre América Latina e, claro, é marxista... o que agrada aos estudantes-militantes do Centro Acadêmico, filiados ao PT, PSTU, PSOL, etc, etc.
Más línguas se perguntavam, nos corredores, se o douto teria tempo de dar um trato na patroa... ou até mesmo se ele não seria uma entidade assexuada. [Para quem tiver curiosidade, dê uma boa e longa rolada de barra no CV do cidadão: http://lattes.cnpq.br/3449605639852165]
Para mim, esse “deus” só vale se puder ser alvo de iconoclastia. Se puder ser confrontado, provocado, contestado. Ninguém merece a tranqüilidade do não-ataque, da não-contestação. Pois é aí que mora a vida, que brota o conhecimento, que nasce algo que não se congela em títulos, currículos ou número de publicações.
E, de certa forma, somos doutrinados a abaixar as orelhas diante de um sumo-sacerdote de seja-lá-qual-assunto. Somos desencorajados a levantar novas questões. Somos enquadrados em esquemas que mantêm seguras as posições dos que ditam regras. E é assim há muito tempo, e em muitos espaços (religião, governo, escola, família...).
Nesse sentido, e de forma inconsciente, me travei de escrever aqui muitas vezes. Lia uma discussão sempre bem embasada dos nobres colegas, ora discorrendo sobre anarquismo, ora sobre manicômios, ora sobre aspectos sociais mais amplos... E pensava: “Bom... vou ler essa seqüência de posts, me inteirar no assunto, ler alguns livros da referência e, aí sim, vou dar o meu pitaco”. Daí que não saía nada, pois já nascia morto.
E eu bem sei, pela índole de meus colegas (que, mais do que virtuais, são amigos reais), que eles pensam de forma semelhante. Sabia que essa travação partia de mim, por não entender que o meu texto era um fluxo como outro qualquer, como o meu fluxo de bosta, de porra, de lágrimas, de ação.
Assim, eu já estava escrevendo (e me inscrevendo) nos atos, no meu dia-a-dia, no meu trabalho, no meu trocar-idéias, nas minhas tantas conversações. Tudo num fluxo, numa rede que não necessita de um ponto de partida e de chegada.
Por isso, há muito tempo abandonei o projeto de ler os clássicos, primeiro, depois os mais recentes; ou ainda, começar a ver os filmes mudos e preto-e-branco, para então, numa cronologia bem limpinha, chegar à produção contemporânea.
Balela!
Comece por onde for, o lugar a chegar se assemelha muito a Quentin Tarantino ou Sófocles.
Somos demasiadamente humanos. Humanamente demasiados.
Nada vai se esgotar aqui. Quando meus fluxos cessarem, outras ondas vão limpar as cagadas na escadaria.
Daí que retomo o fio da meada, ou inauguro de fato, neste post, alguma colaboração.
Mais um fluxo. Outros podem vir. Nada prometo. Nem quero prazos editorias, dead lines ou coisa do gênero. Em certa medida, foi disso que me cansei na pseudo-carreira-jornalística que tive (embora ainda mantenha o mau hábito de ter uma cultura de enciclopédia... E viva as orelhas dos livros!).
Já vou avisando: nada sei sobre Deleuze. Não vou discutir isso.
Ou, talvez, justamente por nada saber... seja interessante discutir Deleuze!
É isso!
Vamos discutir Deleuze!
Bom... Deixemos isso para depois, pois agora vou liberar um fluxo ali no meu banheiro.
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Notas de pé de post:
[1] Na verdade, não um livro em si, mas uma bela fotocópia, que vem esmaecendo seu antigo vigor, perdendo o seu Toner (aquele pó para copiadoras) encorpado, sendo devorado pelo tempo, ficando semi-apagado, mas ainda acessível aos olhos com 0,75 de miopia. Uma fotocópia abusada, que diz “foda-se” à advertência, ironicamente xerocada, no início da obra: “A FOTOCÓPIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO É ILEGAL, E CONFIGURA UMA APROPRIAÇÃO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR”. Bullshit! Conhecimento não se vende! Abaixo à lógica capitalista que quer pôr cercas em tudo, quer definir propriedade em tudo!
[2] Caros leitores, não se espantem com minha proposital atitude de vomitar neologismos, palavras toscas, construções tortas, etc, etc. Andei por muito tempo amarrado às fórmulas textuais exigidas, ao cumprimento do lead jornalístico, aos ditames dos manuais de redação acadêmica (blérg!). Óbvio que formalidades são necessárias em determinadas situações lingüísticas, pero... estoy acá para relajar.
9 comentários:
O texto tá legal... fiquei pensando algumas coisas: talvez cada um procure mesmo o que lhe falta, de alguma forma... pq pô, eu já tenho essa tendência, p.ex., de ler "orelha de livro", de ser um "conhecedor de frases, paragrafos de livros", rs.. de conjunção de idéias, mas sem um aprofundamento tão sistemático...
No entanto, as vezes sinto falta disso, desse diletantismo enciclopédico, ao menos em certas áreas.... sei lá..
Você sintetizou bem um sentimento geral, de pouca ousadia. Tem a ver com o nosso medo de ser julgado também, acho... pois mal ou bem, publicar alguma coisa (qualquer coisa), socializar algo que produzimos é sempre nos expormos à avaliação alheia. Percebe? E tem a ver também com o que vc falou, a padronização e censura prévia dos nossos atos pelos mecanismos "oficializadores". É um misto de ambos.
O problema é quando adquirimos um senso muito sofisticado do que é "bom" - por ex., quando cada vez mais sabemos da existência dos grandes escritores, automaticamente nos rebaixamos... Faz parte do nosso senso "demasiadamente humano". Meio como a máxima filósifica: "só sei que nada sei".
... Mas nem por isso! Cada um terá sua maneira particular de colocar o problema, de fazer análise, de se expressar... enfim.
Eu também tô pra sair desse marasmo.
Esse senso sofisticado do que é bom, tem um pouco haver com o nosso movimento patriarcal, tipo, tudo bem organizado, retilineo, linear. Então se a gente fica fixado nesse ponto, o que é um movimento fácil que nossa sociedade - especialmente acadêmica - nos pede, internalizamos um padrão muito duro, fálico mesmo, uhauha
Um "SuperEu" hiperrígido nos impede de escrever "qqer merda", aumentando a angústia da incapacidade de alcançar um ideal de eu além da conta...
Mas é foda... não mentirei, os dois movimentos me parecem interessantes por certo angulo.
"quando cada vez mais sabemos da existência dos grandes escritores, automaticamente nos rebaixamos.."
Exatamente! Não posso escrever um texto sobre a Guerra Civil Espanhola, por que um fodão já escreveu! Nem sobre economia, trabalho, psicologia, qualquer coisa... E o "ideal" , este combustível do perfeccionista é uma puta trava. Quando vejo a quantidade de diferentes textos para o mesmo assunto, acho que dá sem dó, para escrever, escrever e escrever, sem espelhar-se em nada.
Mas romper tais amarras é um processo fudidamente dificultoso.
Sempre haverão "fodões" para nos limitarmos, gente que já escreveu antes, melhor, maior!
Fico pensando na infinidade de coisas que aprendi em nossas conversas, debates, sacanagens mútuas ou nas minhas próprias e solitárias reflexões... e aí vem uma merdinha de universidade burocrática de bosta, enlata tudo isso... te dá um diploma e diz: É MEU!!! EU SOU O CRIADOR! VAI CRIATURA!
Tive esta reflexão numa aula de filosofia. Quando SIMPLESMENTE o puto do professor, falou uns cinco, seis, ou sete conceitos que eu já tinha discutido, lido, percebido, aprimorado... enfim! Mas agora meu conhecimento é dele! Ele foi a origem! A autoridade do puto, automáticamente me conduz ao limbo dos ignorantes!
Resta eu me doutorar, e aí dizer: aprendi isto aqui! Quando na verdade, meu conhecimento autodidata apenas serviu para me desleixar com o conhecimento enlatado dos putos, ou para passar pelas palavras-cruzadas, testes de raciocínio (i)lógicos, que os mesmos produzem para me testar, enquadrar, acomodar, conformar em suas teias do poder. Preciso aprender a falar "academês" para provar que minha agilidade em coordenar os pormenores do processo reflexivo me permitem receber doutas referências - traduzindo em linguagem de gente comum: não sou burro "demais" para pegar uma merda de um papel assinado pelo MEC.
Mesmo que tenha tido uma reflexão solitária, foi no espaço DELES, produzido a partir do INCENTIVO bancário-pedagógico-unilateral DELES...
Como diria Ivan Illich, "Uma vez que o autodidata foi desacreditado, toda atividade não-profissional será suspeita"
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Este texto me deu vontade de ler Gilles Deleuze... gostei muito!
É bem isso: sempre temos que começar pelo o que nos dizem ser o começo. Mas todo ponto de partida não é um ponto de vista? Assim, todo ponto de partida seria subjetivo e qualquer falácia sobre objetividade vingaria a morte.
Também tento deixar de lado os clássicos (apesar do que o Italo Calvino diz), para que os fluxos comecem a correr de onde quer que seja - do banheiro, do bar, do trabalho ou da orelha de um livro do velhinho Saramago.
Abraço.
Olá!
Olha, cheguei até seu blog por que me indicaram o endereço (o que significa que você já está ficando famoso). O colega que sugeriu que eu visitasse seu "querido diário" virtual, sabe que penso parecido em relação ao academicismo absolutamente insuportável que está alastrado em tudo quando é lugar! Eu, marxista (o que me deixa em bons lençóis com seus amigos de C.A. (bons lençóis em um sentido metafórico, é claro)), vejo que o marxismo hoje é ameaçado por seu estudo acadêmico...tem gente que não compreende que a compreensão do marxismo, para fins revolucionários, dá-se através de um estudo político e, politicamente, a academia não é imparcial (como nada é).
Enfim...adorei o artigo! Vou virar uma frequentadora!
Um abraço!
Adelitta.
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