quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Ainda sobre luta de classes e a questão do sujeito

No último texto, tratei das limitações da luta de classes a partir do prisma de análise do sujeito. Constatei a visão de curto alcance da esquerda em relação ao tema. Neste texto, quero tratar do outro lado da questão, o complemento necessário. O pessimismo absoluto é tão infantil quanto o otimismo absoluto. Convém afirmar, em primeiro lugar, que a reificação sob o capitalismo não pode nunca ser completa. Por mais que os conflitos sejam em sua maioria pautados por uma demanda de reconhecimento institucional (como no recente caso dos subúrbios parisienses) ou aconteçam sob o signo da necessidade econômica impingida na forma de luta por salários, melhores condições de trabalho etc, não existe identidade pura e simples entre o movimento e os seus objetivos imediatos. Em outras palavras, o movimento nunca É aquilo que aparenta ser. No fundo, o que é, é mais do que é. Isso não é um passe de mágica, mas dialética. Uma leitura antiidentitária implica em reconhecer que por baixo do real existe uma gama de possibilidades. A dialética não diz mais que isso - o fato de que o conceituado foge ao conceito. Pensar é classificar, dizia Adorno. No entanto, a realidade contraria o pensamento, transformando-se incessantemente sob o ritmo do Tempo. O classificado transborda a categoria que lhe impuseram, cria ramificações, se expande (pensemos na figura do Incrível Hulk rasgando suas roupas). Isso vale sobretudo para pensar os movimentos sociais e os conflitos no capitalismo contemporâneo. Existe ali sempre algo a dizer, algo que não foi visto ou previsto, uma potência adormecida, potentia como possibilidade.

Do ponto de vista teórico-abstrato, pode ser conveniente distinguir dois níveis fundamentais do conflito. O primeiro nível é o da luta em nome das necessidades - tais como elas foram nomeadas pelo sistema -, o da luta por melhores salários e condições de trabalho, terra, distribuição de renda, cidadania, reformas sociais etc. Este é o nível rasteiro dos conflitos. Do outro lado temos o nível mais perigoso de necessidades e desejos (sem romantismo) que não correspondem diretamente à organização social capitalista. Podemos falar de um conjunto de necessidades que não são facilmente ludibriadas pela sociedade de consumo e que escapam ao escopo do Estado e do mercado. São a autodeterminação e a comunidade. São os Zapatistas no México e os squats na Europa. São novas formas de relação social sendo gestadas no ventre da velha sociedade. Entre um pólo e outro existe uma ponte - incerta, estreita, sempre balançando ao vento. Mas essa distinção, como já disse antes, só é possível na teoria, do ponto de vista arbitrário de quem está sentado com a mão no queixo. A prática é muito mais complexa, comportando um sem fim de conexões e des-conexões, encontros e desencontros. Assim, uma luta sindical pela redução da jornada de trabalho pode vir a desaguar numa luta pela auto-atividade, numa luta anti-trabalho... e assim por diante. No calor do conflito, não há garantias. A explosão da subjetividade coletiva num protesto pode resultar em dias, meses (quiçá anos) de jornada revolucionária (citemos Oaxaca, por ex., ou os estudantes e trabalhadores/as franceses durante o mês de Maio de 1968...). Mas é preciso estar consciente de que, apesar dos pesares, a internalização da ordem existe e nós não estamos isentos das contradições da sociedade capitalista. Não existe mais espaço para uma teoria do Proletariado redentor, e acho que nisso todos nós concordamos.

O ponto de esperança reside, portanto, em "comer cenouras" e visualizar além da realidade imediata. Farejar as fraquezas do capitalismo deve ser o propósito de uma teoria crítica-revolucionária. As relações sociais não estão constituídas de uma vez por todas (é a reificação que nos faz enxergá-las deste modo). Elas estão sendo constituídas, quebradas e re-constituídas a todo instante, dentro do jogo social. O capitalismo nos contraria, dizendo que não, as relações sociais estão postas e acabou. Ele quer nos fazer acreditar que ele foi estabelecido uma vez lá atrás na história e que agora teremos que suportá-lo sem escapatória. Nós dizemos que não, que ele só existe a partir do momento em que acordamos debaixo do som irritante do despertador e nos dispomos a vender nossa força de trabalho, ou no caso dos estudantes, nos dispomos a deixarem outros trabalhadores/as nos formarem enquanto força de trabalho. O capital existe em função do trabalho, o patrão em função do empregado, o governante em função do governado. Se o governado se ergue em suas próprias pernas e se nega a ser governado, o governante deixa de existir, e ambos passam a se relacionar de forma livre. Mas a relação de autoridade é constituída de maneira tal que o governado acredita que existe em função do governante, e não o contrário. Aí é que mora o efeito trincado da dominação.

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É preciso também ter consciência do potencial de crise do capitalismo. Apesar de tudo, Kurz não é só um maluco com ânsia de ser o próximo profeta do fim do capitalismo. Alguns de seus apontamentos são bem lúcidos, como demonstrou o recente vacilo da economia norte-americana pelo viés do abalo do mercado imobiliário. Na sua corrida para provar os limites lógicos da acumulação capitalista, Kurz teve algumas boas sacadas. Há limites estruturais hoje que estão completamente esgarçados, e que só não explodiram por conta das artimanhas do capital (crédito, guerras de ordenamento, estado de sítio permanente). Kurz não é bobo. Ele não acredita em "superação automática" do capitalismo... pelo contrário, ele é ciente da merda que isso pode causar. Se estamos indo "com todo vapor ao colapso", é hora de pular fora, e não de colocar mais lenha na caldeira !!!!

5 comentários:

A. Guerra disse...

Legal pensar também que, no meu caso, a disposição para deixar me formarem para o trabalho é sempre uma disposição indisposta. Quando estou na faculdade, quero aproveitar aquilo da forma mais humana possível, experimentar o convívio pessoal, debater, criar e discutir idéias... não é minha prioriedade a formação profissional, o mercado. E isso acontece com todo mundo, dentro ou fora do trabalho. A resistência e a indisciplina é uma atitude das pessoas comuns ! A obediência está sempre permeada pela rebeldia.

Mr. Durden Poulain disse...

Finalmente algo mais motivador!

Fernando Beserra disse...

Gostaria de comentar brevemente apenas dois pontos:

O primeiro, a questão da identidade. É um assunto longo, eu ainda farei um post sobre isso, mas sobre o que você disse eu colocaria o seguinte: existe sempre um perigo quando falamos dessa idéia antiidentidaria. Por que? Porque ela traz a possibilidade de falar através do outro, ou seja, estar no lugar de saber do outro, de poder. Não é esse o lugar dos marxistas ortodoxos? "Eu sou stalinista, marxista-leninista e, como intelectual, sei sobre você, a revolução se faz assim e assado, seu papel é esse e aquele"....

Entretanto, não quero dizer com isso que devemos considerar apenas aquilo "que é", ou nos atermos numa eterna descrição daquilo que se mostra. Penso sim na importancia de uma "análise" que nos leve além do manifesto, mas com seus devidos resguardos. Na interpretação dos sonhos, p.ex., uma diferença entre o referencial freudiano e o junguiano é que a idéia freudiana leva a interpretação além do conteúdo manifesto a lugar inimaginavelmente distantes daquilo que emerge no sonho, enquanto Jung, mesmo interpretando, vai usar um método de circunvolunção, ou seja, rodar através da imagem, seja com as asssociações da própria pesssoa ou seja com a ampliação, isto é, pensar no contexto e nos arquétipos relacionados a imagem, caso necessário (ai teria mto pano pra manga)..

De qualquer modo, o que proponho é que procuremos a voz do outro, isso em primeiro lugar. O que os revoltados dizem? O que os que, de fato, atuam, falam.. isso é a primeira coisa... depois, em prol de uma ampliação, podemos até pensar no contexto, o que esse ato diz desse momento histórico, nessa devida situação... de que modo se liga subrepticamente a outros ato oi de que forma age como ruptura em relação a outros pontos.

Outro ponto é que gostei bastante do post, aparece sim, como o Durden falou, como "algo mais motivador"... ao mesmo tempo penso que a luta de classes não existe, não porque historicamente as "classes" não tenham se debatido e alterado a história... isso de fato aconteceu, mas quando digo que a luta de classes não existe quero dizer que a luta de clsses é uma invenção moderna que serve a vários fins, como coloquei num comentário no outro post...

Me parece, que em termo de funcionalidade, a idéia de luta de classes é combativa, mas ao mesmo tempo acho que ela deve ser ampliada. Talvez o próprio nome luta de classes não seja tão apropriado assim, mas enfim... com ampliação eu gostaria de dizer que ela deveria englobar não apenas o proletariado, mas também, como englobou muitas vezes: os estudantes, e também a plebe não proletarizada, ou seja, desempregados, loucos, ex-presidiarios, mendigos, etc... por que não? Em termos concretos eu sei que isso é muito dificil, mas acho que todos aqueles que desejam contruir essa nova sociedade autogestationária e anticapital devem ser incluidos na luta, nessa construção permanente.

JH disse...

ótimo texto.

motivador, sem dúvida.

todo mérito por abordar justamente a dinâmica, a dialética, que nos faz ter consciência das impermanências, das fissuras etc, etc.

quanto à não existência da "luta de classes", levantada pelo fernando, creio ser de difícil visualização. acredito, sim, e acho que foi isso que ele quis marcar, é que ela se encontra capilarizada nos mais variados campos... e talvez, realmente, não se possa mais falar de "classes" meramente "econômicas".

o problema é que, na realidade sócio-histórica, tudo isso está muito imbricado (economia-política-cultura), só sendo separado pelos ortodoxos da esquerda, ávidos em fazer cartilha para tudo.

contudo, ainda vejo o peso marcante das desigualdades econômicas, das diferenças de classe, a se perpetuarem, a despeito da "nova era" anunciada como "pós-moderna".

é isso.

abs

Anônimo disse...

fala JH! =)

Com certeza o peso das desigualdades economicas é marcante e tem uma grande potencial atravessador - uma tendência a marcar, alterar a vida do sujeito que se encontra nessa situação. Entretanto, as respostas em relação a esse atravessamento são multiplas, a mídia tenta o tempo todo construir uma resposta para a população(formalmente homogenea) que se insira na dinâmica do capitalismo. As vezes essa respsota é a própria indignação, mas uma indignação modelada, adestrada, acho que isso o próprio Alexandre já abarcou...

Quando digo "A luta de classes não existe" quero dizer que não existe uma resposta pronta, ou seja, a "luta" como respondente ao "estimulo" "divisão de classes". Essa luta, que penso que deva sim ser travada, é uma construção e está sempre em jogo, é preciso que a cada gesto cotidiano façamos emergir essa "luta"... de fato não podemos dizer que ela não exista como fosse um vazio gerada do nada (ex nihilo), mas digo isso no sentido que ela só existe em potencial (inconscientemente) enquanto não se transforma em ato (isso dependendo ainda do contexto)... da mesma forma que existe um potencial a resignação popular, como, p.ex., forma de diminuir a tensão resultante de uma luta... não é atoa que num determinado momento a própria classe pobre vai aceitar e produzir formas de resignação, isso não se deve a uma influência unilinear (da burocracia ao proletário), mas sim a essa relação..

Fernando.