No presente texto abordarei questões relacionadas ao “nascimento do hospital” e aos seus pressupostos iniciais, mostrando de que forma esses pressupostos ajudam a compor algumas práticas de poder e, também, de que forma mecanismos de poder podem produzir: saberes, práticas, etc. Abordarei, brevemente, três dimensões que se fazem presentes em uma série de fenômenos sociais, relacionais, culturais e produzem comportamentos, instituições, etc. Essas três instâncias são: economia, epistemologia e poder disciplinar. O texto não está muito divertido, é verdade, mas acabei resolvendo publicá-lo devido ao longo tempo que eu estava sem escrever, e, logo, sem coragem para prosseguir em textos mais marcados estilísticamente, mais belos ou fluidos. Adentremos, pois, este mundo hospitalienar..
Hoje em dia é bastante fácil pensar nos determinantes econômicos de uma série de atos de poder, pipocam análises sociológicas que levam em consideração esses efeitos. Quem negaria as influencias econômicas colocadas, p.ex., na presidência de W.Bush, em toda guerra do Iraque, em toda disputa de poder entre as grandes empresas, desconsiderando qualquer humanidade, qualquer vida pessoal. Quem negaria as influencias econômicas em atos de poder como na dominação territorial, como na repressão a uma ocupação urbana, num assentamento?
Muito justo. Eu ainda ampliaria esse quadro, as influências econômicas atravessam uma série de fenômenos cotidianos, onde o “deus dinheiro” dificilmente é esquecido e, quando é, certamente mostra seu ciúme como um novo Iavé. Nessas análises, poderíamos lembrar que na invenção do hospital, enquanto modelo médico e não mais religioso ou filantrópico, ainda no século XVIII, uma das grandes questões, p.ex., na hospitalização inglesa era o tratamento do corpo do trabalhador para que este pudesse trabalhar de maneira mais produtiva (não seria o mesmo ideal que o modelo médico-assistencial privativista irá utilizar no Brasil depois de 1965?). Evidentemente podemos ampliar essas questões no âmbito do próprio hospital. No Brasil, a medicina do início do século XX até 1960, estava orientada por um modelo chamado de “Sanitarismo Campanhista” (Mendes, 1996). Esse modelo foi influenciado sobretudo pela economia agroexportadora da época, e utilizou sua “teoria dos germes” em ações que visavam a política de saneamento dos espaços de circulação das mercadorias e erradicação das doenças que poderiam prejudicar a exportação.
Voltaremos ainda a questões econômicas, mas me parece que o modelo econômico isoladamente, enquanto ente, não esgota a complexidade das questões colocadas: sejam de uma história moderna ou mesmo contemporânea. Por exemplo, temos que abrir margem a outras questões que atravessaram esse modelo sanitarista campanhista: era um modelo de inspiração militarista, um modelo repressivo de combate as doenças de massa. Epistemologicamente, ainda, era um modelo monocausal e sensitivista. Abrimos, portanto, mais dois leques de questão, um referente à questão do poder: um poder que não mais é composto apenas de negatividade, ou seja, não se dá apenas a partir da repressão, do recalque, do ocultamento, mas é um poder que cria, produz, o que Foucault irá chamar de “poder disciplinar” ou um poder composto de positividade, nas palavras do próprio: “É preciso parar de descrever os efeitos do poder em termos negativos: ele ‘exclui’, ele ‘reprime’, ‘ele recalca’, ele ‘censura’, ‘ele abstrai’, ele ‘mascara’, ele ‘esconde’. De fato, o poder produz; ele produz real, produz domínios de objetos e rituais de verdade”. Podemos lembrar, apenas em prol de uma ampliação do conceito e, logo, do entendimento, alguns âmbitos que esse poder disciplinar atua: na arte espacial dos indivíduos, o controle no desenvolvimento da ação e não no seu termino, vigilância perpétua e constante dos indivíduos (de preferência a partir de uma hierarquia, onde a própria população vigie a si mesma), registro contínuo.
Através dessa análise do poder, dessa genealogia, ao menos até certo ponto, podemos continuar cerceando a questão do nascimento do hospital. Não o nascimento do hospital enquanto materialidade, enquanto lugar, mas enquanto lugar de cura, de tratamento: o hospital, antes do século XVIII, especialmente antes de 1780, era como já dito, um lugar que de controle religioso: um lugar onde se morria. Havia no hospital uma cura, mas que se referenciava mais a uma cura espiritual, de passagem para a morte, uma espécie de salvação ritual. O hospital vai aparecer com a medicalização primeiramente nos ambientes militares e marítimos, a primeira intervenção medica seria intervir não de modo curativo, mas impedir que os focos de doença se espalhassem, evitando a desordem econômica ou da doença. Logo, se enclausurarão esses doentes e os distribuirão em espaços onde possam ser vigiados, sendo registrado o que acontece. Existem outras questões aqui, mas não nos alonguemos.
Importa pensar também a outra dimensão citada, ou seja, pensar de que modo também a epistemologia atravessa saberes, poderes, subjetividades e ajuda a compor constituições diversas. No século XVIII o principal modelo epistemológico, para a medicina, era o da botânica, o modelo classificatório de Lineu. Segundo Foucault: “Isto significa a exigência da doença ser entendida como um fenômeno natural”. E ainda mais, a psiquiatria em seu começo vai utilizar uma série de idéias da ciência clássica como: a neutralidade da ciência, a naturalidade do encontrado (ex: um sintoma), ou seja, a idéia de verdade natural, o homem é homem da Razão, etc. Algumas idéias que dão base a ciência agenciarão uma série de condutas e novos conceitos como o de: isolamento terapêutico, degeneração, alienação, doença mental, normalidade/anormalidade, terapêutica/cura. São idéias como essa que possibilitarão a emergência do manicômio. Segundo Paulo Amarante:
“Foi no contexto teórico das ciências naturais e do sensitivismo, inspirado tanto em Lineu e Buffon quanto em Locke e Condillac, que Phillipe Pinel produziu seu Traité médico-philosophique sur l´aliénation mental ou la manie, no qual apresentou o conceito de alienação mental e consolidou a prática sistemática do internamento da loucura. Embora o conceito de alienação não signifique ausência abstrata de razão, mas somente contradição na razão, como afirmava Hegel, essa contradição impossibilita a razão absoluta. Portanto, segundo Pinel, aquele em cuja razão existe tal contradição é um alienado, o que o torna incapaz de julgar e de escolher; incapaz mesmo de ser livre e cidadão, pois a liberdade e a cidadania implicam direito e possibilidade de escolha”.
Acredito que, embora longe de definir qualquer coisa, os exemplos mostrados possam abrir discussão sobre de que forma diferentes instancias do saber, do poder ou da prática modificam as relações e construções numa determinada sociedade. Talvez seja mesmo possível observar que essas instancias se interpenetram, se dialetizam, ou se multiplicam através de possíveis embates. Eu já havia observado em outro post algumas relações entre Epistemologia e Poder (cf. Epistemologia, Poder e Paranóia), agora acho que elas ficam ainda mais claras, assim como as relações entre Epistemologia e Economia, especialmente se lembrarmos do post sobre Trabalho e Loucura (cf. no blog). Ainda não adentrei numa questão que muito me interessa, que o Alexandre tem escrito sobre, através da questão da Luta de Classes, a questão da formação da subjetividade.
Parece-me, antes de tudo, que não podemos simplificá-la, é importante observar a complexidade do assunto, assim como a impossibilidade de uma explicação monocausal, na verdade, eu ousaria dizer, mesmo de uma explicação puramente causal. Quando falamos em subjetividade falamos sempre de algo que escapa, mas que ao mesmo tempo pode e deve ser colocada em jogo.
(imagem: família enferma de Lasar Segall, 1920)
Referências:
Foucault, M. Microfísica do poder, 2007.
Mendes, O Sistema Único de Saúde: um processo em construção. 1996.
Amarante. P. Sobre duas Proposições Relacionadas à Clinica e à Reforma Psiquiátrica, in Psicanálise e Psiquiatria: controvérsias e convergências. 2001.