sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Questão EEP

No presente texto abordarei questões relacionadas ao “nascimento do hospital” e aos seus pressupostos iniciais, mostrando de que forma esses pressupostos ajudam a compor algumas práticas de poder e, também, de que forma mecanismos de poder podem produzir: saberes, práticas, etc. Abordarei, brevemente, três dimensões que se fazem presentes em uma série de fenômenos sociais, relacionais, culturais e produzem comportamentos, instituições, etc. Essas três instâncias são: economia, epistemologia e poder disciplinar. O texto não está muito divertido, é verdade, mas acabei resolvendo publicá-lo devido ao longo tempo que eu estava sem escrever, e, logo, sem coragem para prosseguir em textos mais marcados estilísticamente, mais belos ou fluidos. Adentremos, pois, este mundo hospitalienar..


Hoje em dia é bastante fácil pensar nos determinantes econômicos de uma série de atos de poder, pipocam análises sociológicas que levam em consideração esses efeitos. Quem negaria as influencias econômicas colocadas, p.ex., na presidência de W.Bush, em toda guerra do Iraque, em toda disputa de poder entre as grandes empresas, desconsiderando qualquer humanidade, qualquer vida pessoal. Quem negaria as influencias econômicas em atos de poder como na dominação territorial, como na repressão a uma ocupação urbana, num assentamento?

Muito justo. Eu ainda ampliaria esse quadro, as influências econômicas atravessam uma série de fenômenos cotidianos, onde o “deus dinheiro” dificilmente é esquecido e, quando é, certamente mostra seu ciúme como um novo Iavé. Nessas análises, poderíamos lembrar que na invenção do hospital, enquanto modelo médico e não mais religioso ou filantrópico, ainda no século XVIII, uma das grandes questões, p.ex., na hospitalização inglesa era o tratamento do corpo do trabalhador para que este pudesse trabalhar de maneira mais produtiva (não seria o mesmo ideal que o modelo médico-assistencial privativista irá utilizar no Brasil depois de 1965?). Evidentemente podemos ampliar essas questões no âmbito do próprio hospital. No Brasil, a medicina do início do século XX até 1960, estava orientada por um modelo chamado de “Sanitarismo Campanhista” (Mendes, 1996). Esse modelo foi influenciado sobretudo pela economia agroexportadora da época, e utilizou sua “teoria dos germes” em ações que visavam a política de saneamento dos espaços de circulação das mercadorias e erradicação das doenças que poderiam prejudicar a exportação.

Voltaremos ainda a questões econômicas, mas me parece que o modelo econômico isoladamente, enquanto ente, não esgota a complexidade das questões colocadas: sejam de uma história moderna ou mesmo contemporânea. Por exemplo, temos que abrir margem a outras questões que atravessaram esse modelo sanitarista campanhista: era um modelo de inspiração militarista, um modelo repressivo de combate as doenças de massa. Epistemologicamente, ainda, era um modelo monocausal e sensitivista. Abrimos, portanto, mais dois leques de questão, um referente à questão do poder: um poder que não mais é composto apenas de negatividade, ou seja, não se dá apenas a partir da repressão, do recalque, do ocultamento, mas é um poder que cria, produz, o que Foucault irá chamar de “poder disciplinar” ou um poder composto de positividade, nas palavras do próprio: “É preciso parar de descrever os efeitos do poder em termos negativos: ele ‘exclui’, ele ‘reprime’, ‘ele recalca’, ele ‘censura’, ‘ele abstrai’, ele ‘mascara’, ele ‘esconde’. De fato, o poder produz; ele produz real, produz domínios de objetos e rituais de verdade”. Podemos lembrar, apenas em prol de uma ampliação do conceito e, logo, do entendimento, alguns âmbitos que esse poder disciplinar atua: na arte espacial dos indivíduos, o controle no desenvolvimento da ação e não no seu termino, vigilância perpétua e constante dos indivíduos (de preferência a partir de uma hierarquia, onde a própria população vigie a si mesma), registro contínuo.

Através dessa análise do poder, dessa genealogia, ao menos até certo ponto, podemos continuar cerceando a questão do nascimento do hospital. Não o nascimento do hospital enquanto materialidade, enquanto lugar, mas enquanto lugar de cura, de tratamento: o hospital, antes do século XVIII, especialmente antes de 1780, era como já dito, um lugar que de controle religioso: um lugar onde se morria. Havia no hospital uma cura, mas que se referenciava mais a uma cura espiritual, de passagem para a morte, uma espécie de salvação ritual. O hospital vai aparecer com a medicalização primeiramente nos ambientes militares e marítimos, a primeira intervenção medica seria intervir não de modo curativo, mas impedir que os focos de doença se espalhassem, evitando a desordem econômica ou da doença. Logo, se enclausurarão esses doentes e os distribuirão em espaços onde possam ser vigiados, sendo registrado o que acontece. Existem outras questões aqui, mas não nos alonguemos.

Importa pensar também a outra dimensão citada, ou seja, pensar de que modo também a epistemologia atravessa saberes, poderes, subjetividades e ajuda a compor constituições diversas. No século XVIII o principal modelo epistemológico, para a medicina, era o da botânica, o modelo classificatório de Lineu. Segundo Foucault: “Isto significa a exigência da doença ser entendida como um fenômeno natural”. E ainda mais, a psiquiatria em seu começo vai utilizar uma série de idéias da ciência clássica como: a neutralidade da ciência, a naturalidade do encontrado (ex: um sintoma), ou seja, a idéia de verdade natural, o homem é homem da Razão, etc. Algumas idéias que dão base a ciência agenciarão uma série de condutas e novos conceitos como o de: isolamento terapêutico, degeneração, alienação, doença mental, normalidade/anormalidade, terapêutica/cura. São idéias como essa que possibilitarão a emergência do manicômio. Segundo Paulo Amarante:

“Foi no contexto teórico das ciências naturais e do sensitivismo, inspirado tanto em Lineu e Buffon quanto em Locke e Condillac, que Phillipe Pinel produziu seu Traité médico-philosophique sur l´aliénation mental ou la manie, no qual apresentou o conceito de alienação mental e consolidou a prática sistemática do internamento da loucura. Embora o conceito de alienação não signifique ausência abstrata de razão, mas somente contradição na razão, como afirmava Hegel, essa contradição impossibilita a razão absoluta. Portanto, segundo Pinel, aquele em cuja razão existe tal contradição é um alienado, o que o torna incapaz de julgar e de escolher; incapaz mesmo de ser livre e cidadão, pois a liberdade e a cidadania implicam direito e possibilidade de escolha”.

Acredito que, embora longe de definir qualquer coisa, os exemplos mostrados possam abrir discussão sobre de que forma diferentes instancias do saber, do poder ou da prática modificam as relações e construções numa determinada sociedade. Talvez seja mesmo possível observar que essas instancias se interpenetram, se dialetizam, ou se multiplicam através de possíveis embates. Eu já havia observado em outro post algumas relações entre Epistemologia e Poder (cf. Epistemologia, Poder e Paranóia), agora acho que elas ficam ainda mais claras, assim como as relações entre Epistemologia e Economia, especialmente se lembrarmos do post sobre Trabalho e Loucura (cf. no blog). Ainda não adentrei numa questão que muito me interessa, que o Alexandre tem escrito sobre, através da questão da Luta de Classes, a questão da formação da subjetividade.

Parece-me, antes de tudo, que não podemos simplificá-la, é importante observar a complexidade do assunto, assim como a impossibilidade de uma explicação monocausal, na verdade, eu ousaria dizer, mesmo de uma explicação puramente causal. Quando falamos em subjetividade falamos sempre de algo que escapa, mas que ao mesmo tempo pode e deve ser colocada em jogo.
(imagem: família enferma de Lasar Segall, 1920)
Referências:
Foucault, M. Microfísica do poder, 2007.
Mendes, O Sistema Único de Saúde: um processo em construção. 1996.
Amarante. P. Sobre duas Proposições Relacionadas à Clinica e à Reforma Psiquiátrica, in Psicanálise e Psiquiatria: controvérsias e convergências. 2001.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Ainda sobre luta de classes e a questão do sujeito

No último texto, tratei das limitações da luta de classes a partir do prisma de análise do sujeito. Constatei a visão de curto alcance da esquerda em relação ao tema. Neste texto, quero tratar do outro lado da questão, o complemento necessário. O pessimismo absoluto é tão infantil quanto o otimismo absoluto. Convém afirmar, em primeiro lugar, que a reificação sob o capitalismo não pode nunca ser completa. Por mais que os conflitos sejam em sua maioria pautados por uma demanda de reconhecimento institucional (como no recente caso dos subúrbios parisienses) ou aconteçam sob o signo da necessidade econômica impingida na forma de luta por salários, melhores condições de trabalho etc, não existe identidade pura e simples entre o movimento e os seus objetivos imediatos. Em outras palavras, o movimento nunca É aquilo que aparenta ser. No fundo, o que é, é mais do que é. Isso não é um passe de mágica, mas dialética. Uma leitura antiidentitária implica em reconhecer que por baixo do real existe uma gama de possibilidades. A dialética não diz mais que isso - o fato de que o conceituado foge ao conceito. Pensar é classificar, dizia Adorno. No entanto, a realidade contraria o pensamento, transformando-se incessantemente sob o ritmo do Tempo. O classificado transborda a categoria que lhe impuseram, cria ramificações, se expande (pensemos na figura do Incrível Hulk rasgando suas roupas). Isso vale sobretudo para pensar os movimentos sociais e os conflitos no capitalismo contemporâneo. Existe ali sempre algo a dizer, algo que não foi visto ou previsto, uma potência adormecida, potentia como possibilidade.

Do ponto de vista teórico-abstrato, pode ser conveniente distinguir dois níveis fundamentais do conflito. O primeiro nível é o da luta em nome das necessidades - tais como elas foram nomeadas pelo sistema -, o da luta por melhores salários e condições de trabalho, terra, distribuição de renda, cidadania, reformas sociais etc. Este é o nível rasteiro dos conflitos. Do outro lado temos o nível mais perigoso de necessidades e desejos (sem romantismo) que não correspondem diretamente à organização social capitalista. Podemos falar de um conjunto de necessidades que não são facilmente ludibriadas pela sociedade de consumo e que escapam ao escopo do Estado e do mercado. São a autodeterminação e a comunidade. São os Zapatistas no México e os squats na Europa. São novas formas de relação social sendo gestadas no ventre da velha sociedade. Entre um pólo e outro existe uma ponte - incerta, estreita, sempre balançando ao vento. Mas essa distinção, como já disse antes, só é possível na teoria, do ponto de vista arbitrário de quem está sentado com a mão no queixo. A prática é muito mais complexa, comportando um sem fim de conexões e des-conexões, encontros e desencontros. Assim, uma luta sindical pela redução da jornada de trabalho pode vir a desaguar numa luta pela auto-atividade, numa luta anti-trabalho... e assim por diante. No calor do conflito, não há garantias. A explosão da subjetividade coletiva num protesto pode resultar em dias, meses (quiçá anos) de jornada revolucionária (citemos Oaxaca, por ex., ou os estudantes e trabalhadores/as franceses durante o mês de Maio de 1968...). Mas é preciso estar consciente de que, apesar dos pesares, a internalização da ordem existe e nós não estamos isentos das contradições da sociedade capitalista. Não existe mais espaço para uma teoria do Proletariado redentor, e acho que nisso todos nós concordamos.

O ponto de esperança reside, portanto, em "comer cenouras" e visualizar além da realidade imediata. Farejar as fraquezas do capitalismo deve ser o propósito de uma teoria crítica-revolucionária. As relações sociais não estão constituídas de uma vez por todas (é a reificação que nos faz enxergá-las deste modo). Elas estão sendo constituídas, quebradas e re-constituídas a todo instante, dentro do jogo social. O capitalismo nos contraria, dizendo que não, as relações sociais estão postas e acabou. Ele quer nos fazer acreditar que ele foi estabelecido uma vez lá atrás na história e que agora teremos que suportá-lo sem escapatória. Nós dizemos que não, que ele só existe a partir do momento em que acordamos debaixo do som irritante do despertador e nos dispomos a vender nossa força de trabalho, ou no caso dos estudantes, nos dispomos a deixarem outros trabalhadores/as nos formarem enquanto força de trabalho. O capital existe em função do trabalho, o patrão em função do empregado, o governante em função do governado. Se o governado se ergue em suas próprias pernas e se nega a ser governado, o governante deixa de existir, e ambos passam a se relacionar de forma livre. Mas a relação de autoridade é constituída de maneira tal que o governado acredita que existe em função do governante, e não o contrário. Aí é que mora o efeito trincado da dominação.

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É preciso também ter consciência do potencial de crise do capitalismo. Apesar de tudo, Kurz não é só um maluco com ânsia de ser o próximo profeta do fim do capitalismo. Alguns de seus apontamentos são bem lúcidos, como demonstrou o recente vacilo da economia norte-americana pelo viés do abalo do mercado imobiliário. Na sua corrida para provar os limites lógicos da acumulação capitalista, Kurz teve algumas boas sacadas. Há limites estruturais hoje que estão completamente esgarçados, e que só não explodiram por conta das artimanhas do capital (crédito, guerras de ordenamento, estado de sítio permanente). Kurz não é bobo. Ele não acredita em "superação automática" do capitalismo... pelo contrário, ele é ciente da merda que isso pode causar. Se estamos indo "com todo vapor ao colapso", é hora de pular fora, e não de colocar mais lenha na caldeira !!!!