segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Breve abordagem sobre o a questão do sujeito

"A humanidade teve de se submeter a terríveis provocações até que se formasse o o eu, o caráter idêntico, determinado e viril do homem, e toda infância ainda é de certa forma a repetição disso." (Max Horkheimer e Theodor Adorno, Dialética do Esclarecimento 1947)

Um aspecto que sempre foi caro ao escopo do socialismo tradicional é o da inevitável imanência da luta de classes e da suposta classe revolucionária. Basta evocarmos a leitura clássica: a classe trabalhadora é aprisionada externamente pelo capital, e ali permanece, alienada pela ideologia, até o momento em que, tomando consciência de sua opressão, se ergue e faz a revolução. Mas, tal como o trabalho não é capturado "de fora" pelo capital, mas é ele próprio um princípio imanente às relações sociais capitalistas, também a "classe trabalhadora" não pode ser encarada como uma classe realmente revolucionária. Não se trata somente de derrubar o mito marxista da predestinação, mas também de apontar aquilo que a esquerda sempre ignorou, a saber, que a emergência da modernidade (ou do capitalismo, se preferirem) traz em si a constituição de uma forma de subjetividade adequada às suas exigências. Essa problemática remete hoje principalmente ao grupo Krisis e à seus principais colaboradores (ou ex-colaboradores) - Robert Kurz, Norbert Trenkle, Roswitha Scholz. Muito antes, porém, este tipo de discussão já cabia nas bocas da Escola de Frankfurt e até do próprio Marx, se fizermos uma leitura seletiva. E pode-se dizer: a despeito de todo avanço na discussão teórica e na própria experiência, permanece ainda hoje na esquerda a crença incondicional na luta de classes. Esta encontra-se pra lá de arraigada, tanto nos partidos quanto nos sindicatos e demais grupos. Para esta fração, a classe trabalhadora possui uma predisposição quase-natural à Revolução (esta mesmo, com R maiúsculo). A única coisa que a impede de realizá-la é o fato de que sua ideologia é a ideologia da classe dominante. Os meios de comunicação de massa e de "formação" (escolas, universidades ou mesmo as igrejas) veiculam a ideologia burguesa sem cessar, de modo a domesticar os trabalhadores. A questão é que esse discurso não leva em conta a possibilidade (porque é de possibilidades que estamos tratando, e não de leituras absolutas) bem menos otimista da própria classe trabalhadora ser uma categoria imanente ao capitalismo, que tem suas necessidades e desejos "reais" produzidos pelo capital, e que por sua vez o reproduzem. Trata-se aqui da discussão sobre a forma-sujeito: à formação histórica do modo capitalista de produção corresponderia a formação histórica de uma subjetividade adequada e funcional, de uma individualidade massificada, carregada com dispositivos que garantem a reprodução das instituições burguesas. Não se trata de valores pensados. Como bem enuncia Jessé Souza em um dos seus textos, remetendo também a Bordieu, estes valores ou disposições fazem parte do âmbito pré-reflexivo. Estão internalizados ou "impressos" em nossos corpos desde a mais tenra infância - claro, levando em conta que o desenvolvimento da criança se dê no interior da sociabilidade moderna. Evidentemente, não existe nenhuma predisposição de ordem ontológica - ou "natureza humana", se preferirmos o jargão filosófico - que nos leve inevitavelmente às mazelas da concorrência generalizada, da acumulação, da guerra, do livre mercado, da troca, da propriedade privada etc. Não existe determinação genética, psicológica ou de qualquer outra ordem para o capitalismo. Isso nunca passou de ideologia rasteira, e convenhamos, não pode resistir minimamente a um estudo básico de história ou antropologia. A formação de um sujeito predisposto à concorrência e ao dispêndio de trabalho em abstrato é puramente histórica, socialmente estimulada produzida, e só foi possível depois de um longo processo de violência contra populações inteiras (Cf., por ex., o artigo do FernandoR. sobre trabalho e loucura neste blog).

Mas isso a esquerda não quer ver. Ela subestima o capitalismo ao classificá-lo como algo externo - a "propriedade privada dos meios de produção", a "burguesia"... -, enquanto o reproduz dentro de suas próprias organizações (os partidos, por exemplo, são regidos inteiramente por uma razão de cunho instrumental). Também por este meio, sua abordagem resvala sempre para um tom "esclarecido" - os ativistas e demais especialistas da revolução devem influir para conscientizar os trabalhadores. Isto porque ao identificar o capitalismo com um princípio externo - a propriedade privada -, e não como um "modus operandi" que rege o nosso dia-a-dia, ela tende mesmo a cair num tom esclarecido, levando ao pé da letra o papo de "crença nas instituições". E é isso o que acontece.

O problema da luta de classes, como o coloca algumas leituras pós-marxistas, é o de que a luta de classes constitui apenas um mecanismo regulador do sistema, um conflito de interesses imanente ao próprio capitalismo. Pois no fundo, "burgueses" e "proletários", empresários e vendedores da mercadoria força de trabalho, falam a mesma língua - a língua do dinheiro. A gramática, de ambos os lados, constitui um respaldo à formação social regida pela mercadoria. Como se vê, despindo-se daquela visão mistificadora, a contenda é muito mais por uma questão de mercado do que por uma suposta "vontade" de revolução de um lado e "vontade" consciente de opressão por outro. E deste ponto de vista, voltando novamente à discussão inicial, a história do movimento socialista mundial e das revoluções proletárias é a história do desenvolvimento descompassado do capitalismo nas diversas regiões do globo e da luta imanente por direitos e reconhecimento institucional dentro dos limites bem-comportados de Estado e mercado.

Sem querer abordar outros aspectos e problemáticos da luta de classes - pois isso daria provavelmente um livro -, seria preciso nos perguntar onde é que mora a esperança, a possibilidade de ruptura. A esperança, usando um pouco de Holloway aqui, mora no fato de que a constituição histórica do sujeito - como a constituição histórica da sociedade -, não está posta de uma vez por todas. Ela deve ser posta e re-posta a cada instante, pois a cada instante ela está sendo bombardeada por mil e uma falhas que persistem em seu tecido. As instituições são produzidas e reproduzidas na prática social, não subsistem por si mesmas. Com a crise objetiva dos fundamentos do capital, a auto-disciplina do homem ocidental vai perdendo cada vez mais o seu sentido. Os efeitos disso podem ser positivos como extremamente negativos. Somente um estudo mais aprofundado dos efeitos da implosão do trabalho pode avaliar verdadeiramente a situação de risco da humanidade... ou será do capital?

10 comentários:

Carlos Beserra disse...

huauha, só podia ser tu mesmo cara.. as discussões e os textos compasadamente bombardeantes..

Bem, fico feliz por ver um novo post no blog, dando vida ao zumbi.. ele já estava um pouco empoeirado...

Ademais, sobre o texto, é interessante.. a primeira frase já me lembrou Freud quando em "Interpretação dos Sonhos" fala que a infancia ontogenética é uma repetição da infancia filogenética da humanidade.. claro que é algo questionavel, mas ainda é um referencial razoável, claro, se abandonarmos a balela do Complexo de Édipo e suas estruturas rígidas.. É interessante ainda pensar, junto com Jung, que o "Eu" é apenas um complexo formado a posteriori, dentro da vastidão do inconsciente..

Cara, é bem legal no texto essa idéia, que não é de hoje que aparece, de criticar a tentativa de conscientização unilateral dos trabalhadores por uma suposta elite da revolução. Entretanto, os dados estão sendo postos em jogo e é preciso ação, re-ação, produção. Nesse sentido que sempre privilegiei o discurso de, p.ex, um H.Bey que não procura gerar um efeito específico, mas desconstruir "o fascista dentro de cada um", o embusteiro totalitário. Claro que esse também é o discurso de um Foucault, de um Deleuze, etc.

Mas qual maueutica é possível? Como gerar distonia? Como balançar as pernas da atual situação? Como gerar colapso nas estruturas rígidas e paranóicas do poder que se coloca entre as relações cotidianas?

E postando dúvidas: o discurso e o curso da luta de classes não é de se jogar fora, visto que produz combatitividade, produz resistência e não me parece que históricamente foi tão submissa assim... ao contrário, podemos falar de lutas de classes, que se enquadram ou se desquadram de maneiras diferentes...

Enfim, vou comer, depois re-leio o que escrevi e vejo se tenho algo a acrescentar, negar, discutir..

Fernando Beserra disse...

só pra avisar que o "Carlos" sou eu, é que eu usei o CPU do meu pai e acabou saindo o perfil dele, rs.. =P

Continuando: sobre a luta de classes, não acredito que ela seja "o Agente" R(evolucionário) por excelencia, no entanto, poder-se-ia pensar que a classe economicamente pobre guarda um potencial de revolta, de do-ação a luta, maior do que quem está acomodado com seus cpus, televisões, comidas finas... eu disse podería-se, isso não quer dizer que assim seja... somos todos afetados pelo capitalismo, afinal, não somos uma entidade externa que se localiza fora dele, mas estamos no meio do tornado... qualquer um pode romper relativamente com a lógica do capitalismo, qualquer um pode romper com o modus operandi do capital, pode devir revolucionário..

Conquanto essas palavras (esses atos) sejam empiricamente observaveis, ainda assim existe uma certa tendência a certos grupos de furar os fios do capital, desgarrar-se como uma ovelha negra.. e a cada grupo, a cada contexto, é como se o próprio contexto pedi-se uma ação, uma re-ação, etc.. Eu ousaria dizer que existe quase que uma necessidade pessoal em todas as pessoas em romper com a massificação, com o estabelishment..

enfim, já começei até a divagar aqui.. é melhor depois eu re-ler com calma e colocar a opinião mais sistematicamente... só não garanto que farei isso :P

Anônimo disse...

O que eu queria era problematizar o discurso da luta de classes e expor visões divergentes, sem necessariamente as corroborar. Eu acho que tem muita coisa interessante na teoria do krisis sobre a luta de classes, por exemplo... e que o questionamento que eles fazem ao "velho" conceito da luta de classes, que evoca um "proletariado" ontologicamente predisposto à revolução, é muito pertinente. Acontece que eles jogam fora o bebê junto com a água suja.

Concordo com você neste ponto. Há várias formas ou níveis em que a luta de classes ocorre. Na história do movimento operário, houve predominantemente a luta pelo reconhecimento institucional dos trabalhadores, mas houve também o outro lado, o da recusa. Acontece que isso é uma abstração... a rigor, estes dois níveis estão imbricados, a prática é confusa e contraditória. O que pode ser observado é uma preponderância no movimento, seja de um clima mais "reformista" (vide a luta pela jornada de 8h), seja de um clima revolucionário (a Comuna de Paris e por aí vai)... e se a gente não enxerga a transição dialética (ou dialógica, se preferir) entre os dois níveis de prática, a coisa fica embaçada. Mas não dá pra ignorar a nossa formação, ou seja, a nossa identificação internalizada com a ordem burguesa, e uma teoria que negue isto é otimista. Romper com o capitalismo implica romper a reificação das necessidades também... fundar interesses radicais não mediados pelo dinheiro. Essa é a dificuldade. Criar um quadro de referências anti-capitalista...

Como diz Holloway, não existe um "fora" do capital. Estamos todos terrivelmente incluídos no grande esquemão econômico da acumulação. O que existem são nichos de resistência, de negatividade concentrada, que ousam apontar "contra-e-mais além" do capital.

Fernando Beserra disse...

po, pedido geral, galera, pq não resolvemos logo as últimas questões do Colapso esse final de semana?

JH disse...

Amigos...

Sim, sei que ando sumido deste espaço virtual. A desculpa da "falta de tempo"... talvez. Mas creio que, se for para mergulhar, o fôlego tem de ser condizente com a profundidade. Logo, só lendo com calma, pensando, matutando, para poder tecer algum comentário ou até (quem sabe?) produzir algum textinho (que ando devendo aqui).

Contudo, entretanto, porém, todavia... vai um comentário, que acaba sendo uma produção textual mais "fast-food".

Quero só assinar em baixo dessas reflexões iniciadas pelo beligerante A.Guerra e completadas pelo nosso multipersonalidades Carlos-FernandoR (hehehe...).

Creio que o que há de mais valioso nessa discussão é o entendimento de que há uma produção sócio-histórica de subjetividades, papéis, objetivos. E a crítica (ou "autocrítica", entendendo que nosostros acá reivindicamos um lugar nas esquerdas)direcionada às esquerdas é batata, pois a todo momento alguns setores assumem imanências, transcendências, ou sei lá o que, sem refletir muito sobre isso.

É óbvio que não se pode jogar fora a noção de "luta de classes", mas, ao contrário, complexificá-la, atualizá-la, pois não vivemos mais o quadro dos tempos iniciais de configuração da modernidade.

Também me parece claro que, no contexto da luta, da militância, somos "forçados" a assumir certas parcialidades, pois há momentos em que não dá para questionar cada passo dado. Embora não haja (ou não deva haver) prática dissociada de teoria.

Daí que acresentaria a produção de Marcuse que, reivindicando a herança marxista, vai disparar a "heresia" que o fará ser ignorado entre os marxchatos ortodoxos: Marcuse vai justamente detonar com essa suposta predestinação messiânica da classe trabalhadora. No contexto dos países "desenvolvidos" (e, diria, até nos "subdesenvolvidos") a tal "vanguarda" acabou caindo justamente nessa lógica citada pelo A. Guerra, isto é, de "embate" por benesses institucionalizadas... E todo mundo falando a mesma língua: a do dinheiro.

Por isso... bravo, amigos! Pequenos blogs, grandes colóquios.

abs

Rob disse...

muito bom o texto , foge do palavrório comum que não a lugar algum salvo as teses da FFLCH.
Temos ai um amplo e vasto exemplo da classe - proletária revolucionária - que em momento algum ajudou qualquer estrutura socialista no planeta, detalhe, por opção própria, ou o indivíduo não pensa, afinal ?

Parabens;

Fernando Beserra disse...

Não entendi o último comentário, do Rob. Afinal, o que seria "FFLCH"? E dizer que o proletariado nunca fez nada pelo socialismo é uma grande falácia. Mas, ainda, o que seria uma "estrutura" socialista?

Fábio disse...

Um dos melhores texto já postados neste blog.

Uma única (e fatal) crítica: ainda tenta, de alguma forma, salvar o socialismo-comunismo.

Capitalismo e comunismo são duas ideologias irmas, uma não é a superação da outra a não ser a partir de tudo aquilo que as subjaz e que convive muito bem em qualquer um dos dois sistemas, sem jamais destruí-los completamente.

No meu caso, já não mais me interessa ficar debatendo capitalismo X comunismo. Essas duas merdas foram o que de pior os homens já produziram.

Agora, quem é que tem coragem de abandonar tudo isso?

A natureza não nos oferece elementos para comprovarmos a competição ou a cooperação, a propriedade (seja ela individual ou coletiva, privada ou pública).

Nós não vivemos no sistema "capitalista", nos vivemos o sistema que garante o "capitalismo-comunismo", pois o comunismo e o capitalismo reais, não as abstrações idealistas de liberais e socialistas, nunca passaram do que ai está.

O comunismo real, indissociável do comunismo ideal, nunca passou de partidos, estado, coletivismo, autoritarismo, centralização, burocratização etc.

Afirmar que o comunismo real na verdade nunca passou de "capitalismo de estado", "socialismo autoritário" etc., depois de mais de 100 anos de história e de experiências em todas as partes do mundo, é ser ingênuo de doer.

Mr. Durden Poulain disse...

O que eu entendi pelo seu texto é que você desejou complexificar a discussão da luta de classes, sempre mal-apropriada por abordagens simplistas.

Eu acho que a antinomia burguês x proletário, pode ter seu espaço, seu sentido, em determinados contextos mais óbvios(um despejo por exemplo mostra que esta separação é muito nítida), mas em outras pode não tão apropriada.

O que sempre me incomodou nessas análises marxistas mais contemporâneas, é o fato de não proporem soluções concretas, a maioria dessa geração pós-frankfurtiana está muito mais preocupada em analisar o capitalismo, seus mecanismos, invalidar ou validar revoluçòes, caminhos, regorzijam-se assim na posição cômoda e absoluta de profetas do capitalismo(como o Robert Kurz por exemplo), ei, vocês que lutam, está tudo errado, mas eu não sei realmente como se luta corretamente, pois isso seria cometer uma heresia contra a "verdade" absoluta.

O grande problema, é que o próprio capitalismo em si, abarca uma série quase infinita de situações, de relações sociais, de mutações, dos quais análises totalizantes(no sentido em que tentam compreender e abarcar toda essa infinidade de situações) me parecem um tanto quanto presunçosas.

Há por exemplo problemas práticos a serem resolvidos(de organização, de comunicação, de relações sociais e convívio) dentro do chamado movimento de esquerda que parecem estar sempre SUBORDINADOS a primeiro entendermos a mutação e resistência do capitalismo(como se aplicar novas soluções ou discutir algo estaria sempre subordinado a encontrar os pontos de ruptura deste sistema), para depois pensarmos a posteriori como isso se dará.

Concordo que "a cada instante ela está sendo bombardeada por mil e uma falhas que persistem em seu tecido."

Pra mim é nessas falhas que temos de atuar. Pelo menos é isso que me faz acreditar que a "complexidade" da luta de classes não invalida a luta, nem muito menos a apaga(a atualiza segundo às especificidades histórico-sociais) com um conformismo mórbido que espera um "devir" metafísico histórico que aposentará a sociedade capitalista rumo ao reino comunista na terra ou a um momento limítrofe gerado por uma gama "absurda" e independente das ações humanas dos quais não podemos nos envolver.

Não se trata de mero voluntarismo, mas é o a vontade humana de transformação, seja ela "alienada" pela ideologia(visão marxista clássica) dominante ou cooptada pela aceitação do sistema capitalista(teoria da autoridade em Weber) e o jogo infinito de forças políticas que efetivamente vai transformar a sociedade, mesmo que seja a longo prazo em micro-espaços.

Quanto ao tom "esclarecido" dos ativistas e demais especialistas da revolução. Lembremos a diferença entre a teoria da vanguarda e da minoria ativa. Os anarquistas atuam para catalisar o movimento social, mas não para dirigí-lo(como o querem os marxistas-leninistas) ou controlá-lo. Interessante também a separação que você faz do ativista, como algo separado da sociedade, lembre-se que os "ativistas" são estudantes, trabalhadores, negros, pobres, lideranças sem-teto, professores, estudantes universitários, gente que também está presa na relação de dominação capitalista.

Se a luta de classes é complexa, que seja complexa nossa luta também.

Anônimo disse...

necessario verificar:)