O titulo pode assustar, especialmente porque os temas pareçam ter uma relação quase nula, no entanto, com um leve esforço podemos ver que essa ligação não é tão pequena assim. A epistemologia[1] é, numa explicação primária, a teoria do conhecimento, o estudo das bases desse conhecimento, ou ainda, a teoria que “responde” a pergunta: “Como é possível conhecer?”. Numa observação superficial, poder-se-ia supor que se trata de um estudo objetivo, de algo que fala de uma neutralidade, pois nossa sensibilidade já foi “adestrada” ou adestrou-se, por necessidades várias, a pensar a forma científica, e também o capitalismo, como naturais.
Um pequeno estudo histórico nos mostra que as coisas não são bem assim, nem é interessante que as vejamos dessa forma. A epistemologia precisa, primeiramente, analisar-se a si mesma: quais são as perguntas, ou as imagens, que permitem a formulação de um saber? Uma pergunta vital é: “Quais as intenções de determinadas formulações filosóficas que permitem a construção de uma ciência?”. Apenas uma inicial leitura histórica nos mostra que diferentes épocas inventaram diferentes paradigmas[2] ou Cosmovisões (Weltanschauunge), dentre essas é significativo apontar a diferença radical entre as posturas da Idade Média, do Renascentismo, do Modernismo e ainda da Contemporaneidade, embora dentro dessas épocas tenha havido diversas oposições, sínteses, continuidades e rupturas.
A maior parte do tempo as construções epistemológicas tem se baseado em padrões rígidos de Verdade, seja o Realismo, que pressupõe a possibilidade de alcançar o Real (ex: a visão platônica e o realismo científico) ou mesmo o Idealismo. A visão da Razão (Ratio) como argumento inviolável, que ainda hoje escutamos da boca de “cientistas”, seja nas ciências médicas ou psicológicas, foi elaborada com o intuito de criar uma instrumentalidade que desse conta da demanda capitalista, isto é, associou-se numa ligação perfeita com o modelo industrial. A conjunção Descartes, com sua lógica matemática, e o naturalismo de Francis Bacon permitiu essa construção até chegarmos a uma maneira de pensar totalmente materialista, dessa forma acreditando banir toda “fantasia” do mundo medieval e “Iluminando” o mundo das heresias religiosas, indo além, um dos pilares dessa Weltanschauung é a busca de controle do mundo natural, sensível (perceptível), digamos assim, um projeto Gengskaniano de dominação.
Conquanto o Iluminismo possa ter trago “ganhos” observáveis em vários campos tecnológicos, dificilmente podemos falar que ele trouxe as pessoas uma vida mais prazerosa. A informação positivista é unilateral, pretendeu-se verdadeira mesmo depois de suas certezas terem sido abaladas: ela apoiou-se de maneira nítida no Poder instituído defendendo durante muito tempo os bastões da sociedade capitalista: o trabalho, a família, a adaptação do sujeito aos padrões esperados. Para isso contou com uma intelectualidade proposta a apagar as diferenças: psicologia, serviço social, pedagogia, etc. Vimos ao longo do tempo, p. ex., os tratamentos agressivos e o cerceamento que foram feitos com os ditos loucos ou a-sociais, vimos ainda recentemente assistentes sociais agindo contra a vontade de seus clientes sob o manto da objetividade e do bem-estar do próprio “cliente”. Como se pretenderia ajudar um morador de rua que desejasse de fato morar na rua? Na Suíça, na década de 70, uma mulher foi obrigada por assistentes sociais a sair de casa, pois segundo conta-se, sua mãe a estaria “mimando” e, logo, ela não teria independência para trabalhar, se casar, enfim, fazer os afazeres ditos saudáveis. Foi para um outro lar, o que não surtiu efeito, continuava “vagabunda”, então os assistentes sociais ampliaram por 2 anos sua tutela, para “evitar que ela se prostituísse”[3].
Aparentemente temos que ser muito cautelosos quando nos propomos a ajudar os outros, pois o desejo de ajuda constela nos inconsciente uma sombra equivalente, seja com desejos de destruição, seja com aspectos egoístas: ser bem visto nesse meio, poder, além de todos os aspectos cristãos que já bem conhecemos. O bom samaritano que não observa sua própria sombra se torna o pior do vilões, vide a Inquisição.
Temos outra alternativa: abandonar as pretensões de encontrar o Real[4], as tentativas de encontrá-lo apenas criaram uma enorme sombra sobre tudo que não se adequava ao nosso próprio olhar, é importante lembrar que nossas próprias perguntas influenciam nossas respostas. Muita coisa ficou a margem, p. ex., no racionalismo cartesiano, que considera impossível qualquer contradição ou paradoxo. Segundo o existencialismo é justamente na medida em que nos fechamos ao mundo que nos tornamos doentes, pois ficamos impedidos de ver o outro, a dimensão de alteridade não só em relação as pessoas e seus modos de ver o mundo, mas também em relação a qualquer fenômeno (phainomenon).
Se o fechamento em uma verdade é como uma doença, então nenhuma doença poderia ser tão paradigmática como a Paranóia: ‘Para’ + ‘Noia’: pensamento paralelo, pensamento desligado, defeituoso, derouté, entgleist, fora dos trilhos. O atributo primordial da paranóia é a presença de delírios e a impermeabilidade dos mesmos, i.e, eles são tomados como verdades irrefutáveis. Se fantasio que sou um rei esta fantasia se torna real, sou de fato um Rei, não posso observar a fantasia como metáfora: “É como se eu fosse um Rei” ou ainda: “Talvez eu esteja sendo tão presunçoso como um rei, preciso ‘baixar a bola’”. A paranóia é a ausência do Como Se. Muita vezes procura-se os inimigos, os responsáveis pelo Mal, no mais das vezes se tratam de projeções, transferências intensamente carregadas, a um ponto que as vezes parece extrapolar toda vida do sujeito.
Uma possível visão que saia desse referencial é o pensamento junguiano do “Esse In Anima”, de acordo com ele nós não temos acesso ao Real, mas apenas as imagens; sabemos tão pouco da psique quanto da matéria. Logo, o importante não é procurar um real metafísico, além humano, mas saber o que é pragmático. Aqui o que importa é especialmente a intenção de um saber, sua finalidade, digo, o saber científico clássico pode ser bom para construir fabricas, carros, casas, etc., mas ele falha na função de entender o ser humano, ele falha ao pensar em uma sociedade mais prazerosa, ele falha e esbarra em sua própria sombra o tempo todo. É preciso, como costumo falar, que pensemos nossas visões como fantasias, e saibamos que o outro é sempre inesgotável, quer dizer, nenhuma teoria pode dar conta da totalidade do mundo, nem do ser humano. Por mais que procuremos, e isso tem relevância, um saber complexo, completo, é fundamental que ele não esgote a pessoa, pois é justamente onde se encontra o mistério que preservamos nossa singularidade.
A singularidade deve se expandir, se expandir, p. ex., a modos de ação política complementares, a ampliação das diferenças (e uma maior aceitação das mesmas). Ao fugir da massificação, não em um mundo underground fechado, porém em nossa excêntricidade, criamos novos modos de relação. Já dizia James Joyce: "O Estado é concêntrico, o indivíduo é excêntrico". Muitas vezes influenciamos mais os outros através de nossos próprios modos de conduta do que exatamente com falatório.
[1] - Em seu sentido etimológico epistemologia vem de: “episteme” conhecimento superior + “logia” discurso, estudo. Inicialmente Platão considerava que o conhecimento poderia ser divido entre: “Episteme” como conhecimento superior e “Doxa” ou opinião, que seria o saber senso-comum e de pouca valia.
[2] - Embora saibamos da discussão sobre o termo paradigma, aqui ele é empregado apenas como modelo.
[3] - Informações em: O Abuso do Poder de Adolf Gruggenbuhl-Craig. Lembremos ainda que esse quadro se refere a uma data época, embora recente, e não gostaríamos de generalizá-las de todo para a época atual.
[4] - Quando falo em Real, falo de uma verdade inabalável, seja ela manifestada nas ciências supostas “naturais” (?), nas ciências humanas (?), ou ainda presunção de ter encontrar uma sociedade ideal para todos os sujeitos.