sábado, 22 de março de 2008

Retomando o fio da meada... ou mediando a retomada da (conversa) fiada



Palavras, faladas, escritas, conversadas...

Retomando (ou "começando" de fato, posto que é um livro [1] que não manuseava há quase dez anos) a leitura de “Conversações” (Editora 34, 1992), de Gilles Deleuze, me deparo com uma frase chapante, que me faz despertar do longo sono letárgico (talvez até lisérgico), que me fez calar diante dos casuais diálogos aqui arrolados na barra de rolagem. Eis o trecho:

“Escrever é um fluxo entre outros, sem nenhum privilégio em relação aos demais, e que entra em relações de corrente, contra-corrente, de redemoinho com outros fluxos, fluxos de merda, de esperma, de fala, de ação, de erotismo, de dinheiro, de política, etc.” (p.17).

Maravilha!

Comecei a pensar que eu, paralisado no meu não-escrever (algo que me paralisa também no meu espaço kAto nigrA, entregue às moscas virtuais), estava me confinando por, talvez, dar importância demais ao “fluxo-escrita”, por achar que ele haveria de ser pomposo, importante, digno de uma prévia preparação para que saltasse ao meio seja-lá-qual-fosse (web, papel, guardanapo...), trajando, no mínimo, uma roupinha “esporte-fino”.

Bobagem!

Deleuze, esse filósofo que bem pouco conheço (como bem pouco conheço todos os filósofos), esse francês, parceiro de Guattari, que, de certa forma, ri dessa atividade escrevinhadora, dessa pompa acadêmica da filosofia ou de qualquer outro conhecimento entronizado.

No texto que li (uma carta, de 1973, a um crítico severo), o filósofo de unhas longas fala justamente disso: da soberba intelectual que trava a experimentação, a criação, o entendimento novo e não-viciado.

Falando de seu livro em parceria com Guattari (“O anti-Édipo”), ele dispara:

“(...) ele é ainda bem acadêmico, bastante comportado, e não chega a ser pop’filosofia ou a pop’análise sonhadas. Mas surpreende-me o seguinte: os que acham sobretudo que este livro é difícil são aqueles com mais cultura, principalmente cultura psicanalítica. [...] os que sabem pouca coisa, os que não estão envenenados pela psicanálise têm menos problemas, e deixam de lado o que não entendem sem preocupação”. (p.16)

Beleza!

Não sei quase nada sobre Deleuze. Não sei se o que ele disse depois disso valeu a pena. Mas posso dizer – com base nessas palavras apenas – que ele mandou bem. Muito bem.

Acho que vai um pouco ao encontro do post anterior, sobre a miséria dos meios universitários (e de tantos outros). Sobre essa empáfia intelectual dos professores, a síndrome de baba-ovação [2] dos aluninhos, a encenação lustrosa de quem surfa pelas ondinhas intelectuais do momento, etceteras e tais.

Chatices!

Lembro até hoje dos aluninhos do curso de história da UFF a babar por causa do tamanho do (opa!) currículo Lattes (ah, bom!) de Ciro Flamarion Cardoso... chamado de “deus” porque saca de língua egípcia, fala sobre ficção científica, disserta facilmente sobre economia colonial, vomita conhecimentos sobre América Latina e, claro, é marxista... o que agrada aos estudantes-militantes do Centro Acadêmico, filiados ao PT, PSTU, PSOL, etc, etc.

Más línguas se perguntavam, nos corredores, se o douto teria tempo de dar um trato na patroa... ou até mesmo se ele não seria uma entidade assexuada. [Para quem tiver curiosidade, dê uma boa e longa rolada de barra no CV do cidadão: http://lattes.cnpq.br/3449605639852165]

Para mim, esse “deus” só vale se puder ser alvo de iconoclastia. Se puder ser confrontado, provocado, contestado. Ninguém merece a tranqüilidade do não-ataque, da não-contestação. Pois é aí que mora a vida, que brota o conhecimento, que nasce algo que não se congela em títulos, currículos ou número de publicações.

E, de certa forma, somos doutrinados a abaixar as orelhas diante de um sumo-sacerdote de seja-lá-qual-assunto. Somos desencorajados a levantar novas questões. Somos enquadrados em esquemas que mantêm seguras as posições dos que ditam regras. E é assim há muito tempo, e em muitos espaços (religião, governo, escola, família...).

Nesse sentido, e de forma inconsciente, me travei de escrever aqui muitas vezes. Lia uma discussão sempre bem embasada dos nobres colegas, ora discorrendo sobre anarquismo, ora sobre manicômios, ora sobre aspectos sociais mais amplos... E pensava: “Bom... vou ler essa seqüência de posts, me inteirar no assunto, ler alguns livros da referência e, aí sim, vou dar o meu pitaco”. Daí que não saía nada, pois já nascia morto.

E eu bem sei, pela índole de meus colegas (que, mais do que virtuais, são amigos reais), que eles pensam de forma semelhante. Sabia que essa travação partia de mim, por não entender que o meu texto era um fluxo como outro qualquer, como o meu fluxo de bosta, de porra, de lágrimas, de ação.

Assim, eu já estava escrevendo (e me inscrevendo) nos atos, no meu dia-a-dia, no meu trabalho, no meu trocar-idéias, nas minhas tantas conversações. Tudo num fluxo, numa rede que não necessita de um ponto de partida e de chegada.


Por isso, há muito tempo abandonei o projeto de ler os clássicos, primeiro, depois os mais recentes; ou ainda, começar a ver os filmes mudos e preto-e-branco, para então, numa cronologia bem limpinha, chegar à produção contemporânea.

Balela!

Comece por onde for, o lugar a chegar se assemelha muito a Quentin Tarantino ou Sófocles.

Somos demasiadamente humanos. Humanamente demasiados.

Nada vai se esgotar aqui. Quando meus fluxos cessarem, outras ondas vão limpar as cagadas na escadaria.

Daí que retomo o fio da meada, ou inauguro de fato, neste post, alguma colaboração.

Mais um fluxo. Outros podem vir. Nada prometo. Nem quero prazos editorias, dead lines ou coisa do gênero. Em certa medida, foi disso que me cansei na pseudo-carreira-jornalística que tive (embora ainda mantenha o mau hábito de ter uma cultura de enciclopédia... E viva as orelhas dos livros!).

Já vou avisando: nada sei sobre Deleuze. Não vou discutir isso.

Ou, talvez, justamente por nada saber... seja interessante discutir Deleuze!

É isso!

Vamos discutir Deleuze!

Bom... Deixemos isso para depois, pois agora vou liberar um fluxo ali no meu banheiro.

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Notas de pé de post:

[1] Na verdade, não um livro em si, mas uma bela fotocópia, que vem esmaecendo seu antigo vigor, perdendo o seu Toner (aquele pó para copiadoras) encorpado, sendo devorado pelo tempo, ficando semi-apagado, mas ainda acessível aos olhos com 0,75 de miopia. Uma fotocópia abusada, que diz “foda-se” à advertência, ironicamente xerocada, no início da obra: “A FOTOCÓPIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO É ILEGAL, E CONFIGURA UMA APROPRIAÇÃO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR”. Bullshit! Conhecimento não se vende! Abaixo à lógica capitalista que quer pôr cercas em tudo, quer definir propriedade em tudo!

[2] Caros leitores, não se espantem com minha proposital atitude de vomitar neologismos, palavras toscas, construções tortas, etc, etc. Andei por muito tempo amarrado às fórmulas textuais exigidas, ao cumprimento do lead jornalístico, aos ditames dos manuais de redação acadêmica (blérg!). Óbvio que formalidades são necessárias em determinadas situações lingüísticas, pero... estoy acá para relajar.